domingo, 12 de julho de 2009

CAROS AMIGOS, ESTE BLOG JÁ ERA. AS ESTÓRIAS QUE AQUI ESTÃO PARTILHADAS ESTARÃO BREVEMENTE NUM LIVRO, DE SEU TÍTULO "DESALINHO". QUANTO AO MEU NOVO BLOG, POSSO ADIANTAR JÁ QUE SERÁ WWW.DESALINHOEMVAO.BLOGSPOT.COM, MAS AINDA NÃO O CRIEI. PARTILHAREI NESTE NOVO DOMÍNIO ESTÓRIAS DO TERCEIRO LIVRO. "LIGAÇÕES"
.
ATÉ BREVE.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Olívia

Cztery

Dói-me a cabeça. Abro os olhos, percebo a claridade e o ar pesado em todo o lado. Cheira a sono, tabaco, e vinho tinto. Castigo a minha dor de cabeça por me permitir recordar-me do que disse e me foi dito na noite anterior. Porque não pode a ressaca ser mais decidida e levar de mim tudo o que se passou? Levanto-me, nua, procuro a tua presença, e percebo estares na varanda. Uma nuvem de fumo paira ao redor da tua cabeça, como uma auréola perdida por alguém que mais a merecesse. Bebo um copo de água, e apetece-me que a noite anterior desapareça, para sempre. Ao pousar o copo na banca, que te chama com um fresco estalar, penso que dia gostaria, de facto, de reter de ti. A noite de ontem, a última terça, a noite de segunda… tudo momentos infernais, talvez o preço a pagar pelos cada vez mais raros momentos brilhantes que temos.
Visto a minha roupa interior e abro a porta da varanda.
- Que queres, Olívia? – perguntas, sem te virar. Vejo a tua pele desconfortável, anunciando-me o frio que sentes, o sacrifício que fazes para estar noutro sítio.
- Não sei. Não sei mesmo… – respondo, com toda a honestidade. Tiro um dos teus cigarros e acendo. Fazes-me sentir sem valor e suja na maior parte das vezes, e por isso me é difícil aceitar quando não o fazes. Deixa-me numa posição em que não sei que momentos esperam por quais. Esperam os belos pela destruição, ou esperam os maus pelo suave glamour dos teus beijos? É este não-saber que faz com que, quando te encontro amoroso para comigo, escolha esses momentos como os melhores para me vingar – Não faço de propósito, sabes… – admito, como se estivesses na minha cabeça nos segundos que antecederam esta conclusão. Olhas para mim e não dizes nada. Detesto pedir desculpa! Sinto-me frágil e sinto que te esqueces de todo o papel que tens e sempre tiveste nisto tudo – E não sei que te diga. É que… o pior também é que sou sempre eu que não sabe o que dizer…
- O quê? – perguntas, parecendo genuinamente confuso, enquanto se sentas na espreguiçadeira.
- Sou sempre eu que não sabe o que dizer, porque sou sempre eu que quer dizer alguma coisa! Tu pensas sempre que não falar de nada é a melhor maneira, mas adivinha, não é…
- Eu não quero começar outra vez…
- Claro que não queres começar outra vez. É incrível como me dás razão de maneira tão fácil, sem sequer te aperceberes… – digo, a meia voz, dando-te as costas. Ouço-te levantar e entrar. Como me odeio por querer ir atrás de ti. Sinto uma energia entre os nossos corpos como nunca senti, algo galáctico e inexplicável, que deixa a minha racionalidade a encolher os ombros e o meu coração apertado, desapertado. Batalho contra mim mesma, e num gesto de evidente masoquismo, acabo o meu cigarro com calma, e apenas aí entro no quarto. Vestes-te, sentado na cama – Onde vais?
- Sei lá, vou sair daqui, só sei disso. – respondes, cansado.
- Sais assim, sem mais nem menos? – lanço, mostrando-te o que realmente quero dizer com a minha pergunta.
- Olívia, deixa-te de merdas! Há mais alguma maneira de sair? Estou farto disto. Já não vai dar. Está cada vez pior. Fazemos merda atrás de merda. Tu fazes o que te apetece, jogas comigo,… - sento-me na cama, de lado. Vejo-te, pelo canto do olho, a apertar os teus sapatos.
- Diz-me só isto, Bernardo. Faço-te alguma coisa que tu não me fazes?
- Fazes tudo! Eu não mereço metade das merdas que tenho de aturar contigo! E ainda assim levo com tudo, com as tuas mudanças de humor, com o teu talento especial em estragar seja que momento for… pensas que quando estás feliz tenho de estar, que quando te apetece foder, tenho de foder, que quando te apetece ir aos arames, tenho de entender! – soltas, quase violentamente. Aguento o desespero firmemente, com um rosto que demonstra a mais genuína indiferença. Espero que te levantes. Dizes qualquer coisa mas não consigo falar, com medo de rebentar em lágrimas imerecidas. Deixo-te sair, caio para trás, e molho com lágrimas os lençóis que momentos antes nos tiveram. Penso nas tuas cruéis palavras, em como pode ser possível que digas de mim tudo aquilo que penso de ti. O meu interior alterna entre sentir-se como a pessoa mais injustiçada de sempre, e a pior pessoa que já existiu.

Seremos tão parecidos ao ponto de nos afastarmos irremediavelmente? Estarei enganada e serei mesmo eu o problema? Não, tenho a certeza que não. Mas não consigo aceitar que o facto de sermos tão parecidos nos afaste tanto assim. Como é possível termos noutra pessoa uma parte de nós e isto apenas colocar um abismo de diferença entre cada palavra? Deixo a minha mente vaguear e, certa que voltarás, mais uma vez, procuro no passado onde as coisas começaram a correr mal.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Olívia

Olívia

Acordo. Não me apetece levantar. Sinto-me meio pesada hoje. Sinto que o esforço de ser feliz às vezes pode ser cansativo. Custa fazer o trabalho todo sozinha. Custa e deixa-me e questionar se consigo. Levanto-me e lavo a cara no quarto-de-banho, ao som de Nina Simone. Penso na minha própria sugestão, faz alguns dias. Perguntei, de mim para mim, qual seria o problema de visitar um psicólogo. Sei lá, para ver como é, para ver se me ajuda a tentar fazer algum sentido destas ideias que tenho, dos pensamentos que me ocorrem todos os dias, todos os segundos. Penso. Não só dos maus, concerteza, mas de toda esta confusão de esforços que tenho. Sinto a minha mente a puxar por tudo quanto é lado. Entro no chuveiro, arrepio-me com a água fria e queimo-me com a rápida mudança para água quente. Sinto que o que tenho e o que quero nunca será o mesmo, e se por um lado tento aceitar isso sem problema, por outro vejo tal tarefa como algo talvez demasiado exigente. Sempre me senti assim, difícil de agradar. O que é mais interessante é que, quanto mais tempo passa, não sei se, nem que só por vezes, o que me davam, ou o que eu me dava, era suficiente. Não tenho um caderno onde possa anotar o que me dão, e o que é suficiente, e isso faz com que, pelo sim, pelo não, queira tudo. Entro no quarto e começo a vestir-me, sem pensar em demasia naquilo que levar. Sim, talvez uma opinião de alguém de fora, treinado em ver as coisas com mais clareza, me pudesse ajudar. Se bem que ninguém tem a fórmula secreta…
Pinto os lábios na fila do trânsito lisboeta. Reparo como me esqueci de ligar o rádio, ritual de todos os dias. Inclinada que estou para pensar e questionar, penso se estarei a pensar em demasia, e isso me deixe assim, alheada do que costumo fazer, de como costumo ser. Como é possível pensar-se que talvez se esteja a pensar em demasia? É mesmo disto que falo! Às vezes parece que a minha VIDA e a minha maneira de ser têm de ter sido criadas por alguém. Tenho pensado (claro) nisto, e pensar em Deus é para mim muito aborrecido. Queria a minha existência mais fictícia, como que preferindo ter a minha própria forma de ser, ainda que irreal, do que a realidade de toda a gente.
Chego à escola e estaciono o FIAT à minha própria maneira, e quando saio acendo um cigarro. Vejo umas dezenas de carros novos. Sempre gostei de Setembro e as novas enchentes de professores que vêm contaminar o espírito de velhice das paredes colegiais. Estou prestes a acabar o cigarro e entrar, quando vejo, ao fundo, saindo de um Renault qualquer coisa alguém que me parece um sério candidato a professor mais bonito do ano. É alto, tem cara de poucos amigos, um rosto redondo e veste-se impecavelmente.

- Eduardo, prazer! – anuncia, quando finalmente nos apresentamos, na sala dos professores. A sua voz não é tão firme como imaginava, e vi a sua cara de poucos amigos subitamente transmitir-me alguém muito simpático e interessante. Facto é que, apesar de ser diferente do que aquilo que imaginei, passado uma hora de conversa estou caída por ele. Gostei sobretudo da maneira como a conversa saltava de tema em tema, com um fio condutor invisível mas que me deixava com a confortável sensação de ser ouvida e entendida.

Quando vim para casa, trazia comigo um sentimento diferente. Afastei um pouco para o canto a ideia de visitar um psicólogo, apenas porque alguém fora capaz de me ouvir por horas a fio. Que quero, então? Que me percebam? Penso nos meus pensamentos de manhã, e em como tudo o que eu queria era perceber-me, e questiono a ligação que há, ou não, entre alguém me perceber, e eu própria o fazer. Talvez seja uma perversa mistura entre ter um potencial amante, e alguém com quem conversar ao mesmo tempo, algo de que (quase) sempre fui privada, nesta contagiante VIDA…

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Pedro (Que Sou Eu?)

O que sou eu? O que sou eu e esta matéria que me habita? O que sou eu e estas lágrimas que nunca falam e se limitam a sorrir e acenar timidamente? O que sou eu e esta vontade escrever sem saber o que escrever?
.
Não sei nem faço ideia. Não sei o que sinto na maior parte das vezes. Não sei o que sinto porque tento defini-lo. Não o tento estudar e reduzir a variáveis ou merdas assim, mas tento agarrá-lo… e é tão estranho, acredita. É tão estranho porque dou por mim perante a estúpida impossibilidade de agarrar um sentimento, tê-lo e guardá-lo só para mim. Dura sempre menos que um segundo, vive sempre mais fugaz que um arrepio. Desaparece e não deixa nada a não ser saudades. Porque tem o sentimento de ser tão irmão do tempo? Porque tem o sentimento de ser nada mais que uma cópia do incopiável tempo dentro de nós? Nenhum se deixa agarrar, ambos deixam devastadoras pedras pesadas no caminho de quem as viver. Sem o tempo o sentimento não tem como existir, sem o sentimento o tempo não tem por que fazer sentido.
.
Ouço uma música excelente. Apetece-me rebentar em palavras, espalhar a minha alma numa virtual folha a4. O que, claro, é uma boa merda, porque nunca, por mais que eu queria, conseguirei definir um milésimo do que sou em palavras. Que caralho, pá… porque tento tanto? Parece que tento o impossível, sempre almejando alcançar a perfeição da perfeita definição dum segundo ou três, preocupando-me mais, quem sabe, com a sua preservação do que com a sua constatação. Viver é excelente. Excelente e excelentemente estranho. Que fazer?
.
Que fazer se estar bêbedo para mim neste momento me obriga a não largar o teclado? Bebi vinho, bebi cerveja. Bebi e tais elixires deixam, como sempre, em mim uma energia de espalhar. Nem sei bem o quê, sabes, mas quero espalhar. Batalho e penso em... mas quem sou eu para me achar digno de algo partilhar? Ganho a batalha e penso que, em princípio, todos temos algo valioso para dar. Ou será que sim? Não sei, mas gostava de saber... ui, tirem-me!!

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Rita - ;oiuhfeuhfou

Retiro um certo prazer da incompreensão das outras pessoas. Adoro que não me percebam. Que seria de mim se fosse apenas um mais um na mente da pessoa que me olha de lado? Não, não me quero reduzir a isso. Não quero a indecisão que é estar assim tão certa.


Por isso mesmo, gosto de ser o enigma que sou. As perguntas que trago comigo são pesadas como uma cruz de tijolo. As perguntas que trago comigo arrastam-me para o chão e quase me fazem lambê-lo. Os passos arrastam o meu espírito por uma qualquer clareira de estupidez sem razão nem sentido. O que ofereço ao mundo tem como retorno tudo aquilo que quero ter. Falho completamente ao interpretar seja que sorriso. Não quero saber. Não quero saber. Quero apenas ser eu, sozinha, e caminhar entre os mortos como qualquer ser aparentemente vivo o faz.


No fundo acredito que a minha consciência desta morte vivida apenas me deixa mais perto de ser do que o meu amigo mortal. Quem sabe o estado em que me encontro seja um salto qualitativo, onde tudo é diferente, onde eu, Rita Real, posso ser apenas esta lágrima de coisas que não existem. Quem sabe eu posso ser um átomo num outro mundo que não existe senão para fazer com que, na cabeça de alguém, tudo seja feliz.

terça-feira, 5 de maio de 2009

terça-feira, 14 de abril de 2009

Tempos

um

As coisas tinham mais piada quando ainda brincávamos de noite. Jovens e ferozes abraçávamo-nos e rebolávamos entre os gigantes fetos que, altivamente, nos invejavam de alma cheia. O que havia para não invejar? A VIDA existia só para nós, as almas que tocávamos eram incandescentes, os segundos estendiam-se diante dos nossos olhos como oportunidades irrecusáveis. O ar, que cheirava a quente, entrava dentro de nós aos pontapés, adormecíamos ao relento e sorríamos com as reprimendas ferozes dos nossos pais.

Vivíamos cada dia com uma simplicidade que hoje em dia desconheço. O sol nascia, punha-se, e eu gostava da tua companhia. Pouco mais precisava de saber. Lembro-me do teu cabelo louro completamente descontrolado com os quase furacões por que passávamos, lembro-me de esfolarmos os joelhos e beijarmos as nossas feridas para sarar. Que bom que é ter-te tido assim, guardar em mim a memória indelével duma infância incrível. Ida, perdida, mas nunca esquecida.

Mas foi há tanto tempo… Sinto-me um pouco estranho, sabes… Sinto-me estranho por ver essas imagens tão longe. Éramos tão novos e felizes… Vivendo na ignorância e ingenuidade de pensar que todos os dias seriam os mesmos, para sempre, vimos o tempo passar, a voz mudar, a atracção nascer… A pureza da infantilidade foi desaparecendo lentamente, imagino que mais preguiçosa para comigo do que para contigo. Com o tempo, deixamos de nos rir a bandeiras despregadas, deixamos de ir abraçados para a escola, deixamos de dormir juntos. A minha estranheza inicial era cedo disfarçada pelas tuas razões inexplicáveis. Incrível como num segundo eras como que minha irmã, tudo aquilo que me deixava feliz, para quase repentinamente seres tudo aquilo que me deixava desesperado. Via a tua atracção pelos outros rapazes algo difícil de aceitar, via os teus segredos partilhados comigo como algo impossível de tolerar. Sorria, claro que sorria. Cada sorriso era tão difícil como o tempo voltar para trás… Sorria e ria para não te mostrar o quanto me doía eu não fazer parte das estórias que me contavas.

Quando me perguntavas de quem eu gostava, com quem eu queria namorar, nada conseguia fazer senão inventar nomes, datas e acontecimentos. Preocupava-me imenso com os detalhes para não perceberes as minhas mentiras ridículas, esforçando-me por acreditar que acreditavas. Pensava nas razões que te estavam a afastar de mim, e era-me difícil perceber se realmente o estavas a fazer. Porém, não tardei em perceber que não. Não te afastavas, eu simplesmente queria mais, e via o teu não-querer como um terrível afastamento, uma rejeição que levaria, a qualquer momento, à minha própria rejeição, numa estúpida tentativa de ser o primeiro a mostrar ao outro que a sua companhia era dispensável.

As minhas acções e pensamentos iam-se desenrolando mais ou menos conscientemente… Na verdade pouco domínio tinha da minha estupidez que acabaria por te afastar.

Comecei por esforçar-me ao máximo por organizar fosse o que fosse, fosse com quem fosse, menos contigo. Hoje custa-me escrever isto. Custa-me a constatação de tudo o que fiz, e de como, pouco mais tarde, te faria chorar, te faria triste, a ti, a pessoa de quem eu mais gostava, de quem eu ainda hoje mais gosto e gostei. Como podemos ser tão cruéis com as pessoas para quem apenas queremos bem? Seremos assim tão inseguros ao ponto de preferirmos evitar a rejeição repudiando as pessoas de quem mais gostamos? (Serei assim tão inseguro por falar no plural?) Tudo o que eu fazia vinha do meu interior, dum estúpido ego, preocupado em evitar a verdade… verdade essa que na minha cabeça se manifestava apenas num grande e redondo não, que nem tinha por que existir. Talvez seja mais fácil magoar quem gosta de nós. Todas as armas são-nos entregues, temos apenas a opção de como as usar.

Cobarde que era, quando me perguntavas se se passava algo, apenas dizia que não, que estava tudo bem, e cruelmente devolvia a questão, perguntando-te se não estarias a ver coisas que não existiam… O teu olhar, para mim, foi-se perdendo com o tempo, em dias que pareciam semanas, em semanas que pareciam anos, até que começávamos a fazer parte de grupos distintos. A tua beleza, por outro lado, não perdoou e continuou a esticar as cordas da minha imaginação a cada diz que passava. Não tendo sido tão generosamente brindado quanto tu, tinha de me esforçar mais para ser popular, e o meu sentido de humor, desobediência e talento para o desporto foram-me tornando numas das pessoas mais populares da escola, como parte dum grupo cada vez mais rival do teu. Já não éramos amigos, mas o passado que partilhávamos, de certa forma, mantinha-nos ligados, e quando me sorrias, do outro lado do corredor, algo estranho se passava de dentro de mim. Era atingido por uma tristeza súbita, fruto da constatação duma realidade onde não sabia como tinha chegado. Ainda caminhávamos juntos para casa um dia ou outro, quando por acaso nos encontrávamos pelo caminho. A conversa mostrava-se cada vez mais difícil de surgir, ainda que, uma vez que aparecesse não permanecesse com essa timidez que em nada ajudava.

- Engraçado… – disseste-me uma vez. Tínhamos acabado de chegar a tua casa, e depois de um seco “xau”, preparava-me para seguir. Ficaste parada no meio da estrada, a mochila apoiada num ombro apenas, o teu cabelo enrolado numa grande trança de trigo dourado – Antigamente tudo do que falávamos era do futuro… Agora, e quando falamos, é sempre do passado… – soltaste, tristemente. Nada mais te ofereci de volta, perante a tua pragmática afirmação, que um levantar de sobrancelhas e um encolher de ombros. Foi a última vez que fomos juntos para casa.

A verdade doía, e a estranheza perante o que sentia por ti em nada ajudava. Dava voltas e mais voltas à cabeça, e não conseguia perceber como uma amizade de infância se poderia ter transformado num amor tão insólito e mais ainda, como fazia, não só por se manter, mas por se adensar irremediavelmente com o passar dos anos…

Com o passar dos tempos os grupos de que fazíamos parte oficializaram as suas diferenças e ódios de estimação, com mensagens nos quartos-de-banho, brigas ocasionais e piadas a cada segundo. Eu começava a fumar e a vestir-me com casaco de cabedal e calças rotas, tu mantinhas a tua pureza, o teu estilo, fosse o que fosse que tanto te fazia bela e especial. Tínhamos quinze anos, se não me engano, quando te dei a conhecer, ainda que sem o querer, o adverso dos sentimentos que tinha por ti. Passavas no bufete, e ouviste-me gozar com as tuas camisas às flores e as tuas tranças, coisas que, no fundo, adorava em ti. Não quero repetir o que disse, e talvez tenha feito por esquecer, mas algo que trarei sempre comigo é a tua imagem, diante de mim, com lágrimas nos olhos, a olhar estupefacta, como se a tentar perceber se o que se estava a passar era mesmo real… Eu, claro, nada fiz senão soltar um “oops” molhado de sarcasmo, avolumando a chacota por parte de toda a gente.

Nessa noite, ainda que fizesse por matar qualquer sentimento, não conseguia apagar o buraco gigante e negro que tinha dentro de mim. Não o queria sentir, não o queria admitir, e creio que quase tinha sucesso na arte de a mim próprio ludibriar. Claro que quando tudo aquilo que via, fosse de olhos abertos ou fechados, era o teu rosto choroso, tornava-se demasiada evidente a pesada realidade da estúpida e triste pessoa em que me tornara.

Era criança, jovem, adolescente… Porém, ainda que por vezes tivesse tentado, nunca consegui realmente desculpar a minha atitude com a minha idade. Não aceitei os sentimentos que carregava dentro de mim, e isso apenas aumentou, de dia para dia, a sua pressão. Quem sabe um par de palavras tornaria tudo completamente diferente. Todavia, deixei-me levar por um estúpido medo, de uma rejeição apenas imaginada. E que fiz com isso? Magoei, antes de ser magoado. Magoei, como se fosse inevitável alguém o ser, e como se fosse muito mais importante ser a pessoa de quem eu mais gostava a sofrer, do que eu, com o meu ego de dois andares…

dois

Voltamo-nos a encontrar.
Nem sabia a última vez em que te tinha visto, mas ver-te quando vi, mais ou menos há um ano, depois de ter passado tantos tempo sem o teu olhar, foi sentido por mim como uma súbita brisa fresca, um instantâneo viajar aos tempos em que era mais feliz.

Foi em Lisboa, onde tinha ido ver um concerto com alguns amigos. Estava no Vasco da Gama, na fila do McDonalds e vi-te a passar ao fundo. Não percebi logo que eras tu, pois dada a improbabilidade de tal acontecer, pensei que fosse apenas alguém parecido contigo. Contudo, quando viraste um pouco a cara, o poderoso disparo de adrenalina que senti dentro de mim disse-me tudo o que precisava saber. Disse aos meus colegas que voltava dentro de momentos, e saí a correr na tua direcção. Estava nervoso, muito nervoso. Não tinha nenhuma imagem ou momento particularmente gravados na cabeça, nada de que me sentir orgulhoso ou envergonhado, nada senão a vontade de te abraçar durante alguns dias. Quando apenas um metro nos separava, abrandei subitamente. Admirava a tua esguia figura, sintia o teu cheiro. Toquei-te na mão direita e voltaste-te para trás. Os anos fizeram-se sentir, mas leve, levemente, pelo que, ainda que sabendo que tinhas trinta e quatro anos, poderias facilmente parecer meia dúzia de anos mais nova. Ainda usavas o cabelo longo, mas tinhas deixado as tranças algures na juventude. Os teus olhos ainda brilhavam, e os teus lábios finos pareciam destreinados em sorrir, quem sabe apenas porque não o fizeram de imediato como os meus, que se abriram largamente.

- Mi… Miguel? – perguntaste, ainda sem sorrir!

- Sim, Ana! Há tanto tempo!! – constatei, sorrindo por mim e por ti. O meu entusiasmo em te ver não era partilhado por ti, notoriamente. Porém, não me surpreendia, e pouco depois dos típicos “tudo bem? / que fazes por aqui? / etc”, atrevi-me. – Olha, eu sei que já não nos vemos há anos, e que fui um parvalhão contigo durante anos a fio, mas gostava muito de jantar contigo hoje, ou fazer qualquer coisa… – o teu olhar da mesma forma se atreveu, e lançou-me um “estás doido” sem querer – Anda lá, pelos bons tempos que passamos.

- Isso é um bocado à filme… “pelos bons tempos”… Mas não vai dar, Miguel, tenho uma reunião e depois tenho umas coisas para fazer… Se calhar para uma próxima vez, sabes

- Uma reunião? – interrompi – São sete da tarde! Anda lá Ana, eu prometo que te explico tudo, e a razão da minha imbecilidade

- Que imbecilidade? Eu nem sei do que – tentaste.

- E podes sair a qualquer momento – voltei a ganhar domínio da conversa – e nunca mais me falar na VIDA, mas anda comigo hoje, por favor! Pensa nas probabilidades de te encontrar aqui! – demorei um pouco mais que isto a convencer-te, mas finalmente acedeste. Sabia que não estavas a vir porque realmente te apetecia, via alguma relutância e uma espécie de última oportunidade. Mas não me importava. Sentia que tinha de explicar tudo o que se tinha passado, os caminhos que tomei e porquê.

Assim, para desagrado de Paulo e João, não fui ao concerto. Os U2 voltariam a Portugal, e não sei se te voltaria a encontrar assim, do nada, tão cedo. Apanhamos um táxi, e perguntei-te por um sítio bom para comer. Estavas diferente. A tua beleza agora manifestava-se forte e independente. Não eras já a ingénua Ana, com um sorriso despretensioso, tinhas-te tornado em outra Ana, segura e quem sabe desconfiada. É sempre difícil analisar alguém acerca de quem temos tantas ideias, com quem crescemos e julgamos, um dia, conhecer perfeitamente. Quando gostamos de nós fazemos tudo por não mudar, quando amamos outra pessoa, rezamos a quem seja preciso para que não tenha mudado. Não acalentava nenhuma esperança, a estrada entre nós era agora muito grande e longa, algo impossível de ultrapassar com um jantar, um café e um pedido de desculpas. Porém, ainda que nunca mais te visse, queria que continuasses a ser tu, queria acreditar que algumas pessoas, simplesmente, nasceram para se destacarem dos demais, existirem num outro nível, dando aos restantes humanos nada mais que uma leve esperança acerca da nossa mortal condição. Deus, como te idealizo…. Não me importo.

Levaste-nos para o Bairro Alto, a um restaurante de Tapas, de ambiente descontraído e agradável. Pelo caminho fiquei a saber que vivias em Lisboa quase há dez anos, eras jornalista e tinhas uma filha. O choque da última novidade foi pesado, ainda que aliviado um pouco quando disseste que o pai da menina fazia parte dum distante passado. Uma vez mais, o estúpido egoísmo… como poderia ficar feliz por estares sozinha?... Sei bem que se dependesse de mim, da minha racionalidade, queria apenas que fosses o mais feliz possível, não me interessava como. Contudo, o reverso da medalha que é a nossa irracionalidade ver-nos-á sempre como o centro do mundo, e admitiria apenas a tua felicidade se no meu lado.

- Disseste que me ias explicar as razões da tua imbecilidade, Miguel. Nem percebi bem do que estavas a falar de início, sabes?... E é estúpido, pois realmente a nossa relação ardeu duma maneira impressionante… – disseste, mordendo um pimento – Mas nunca mais pensei nisso… e por isso hoje quando te vi estranhei a maneira como me senti… – admitiste, fugindo com o olhar.

- Como te sentiste?

- Espera. Diz lá tu o que tens a dizer. – ordenaste. A tarefa de expor a minha estupidez, subitamente, mostrou-se dez vezes mais complicada do que alguma vez pensara. Dei um gole no Muralhas quase exageradamente fresco que pedíramos, respirei fundo. Antes de entrarmos de cabeça no assunto, tinha tentado trazer para a mesa algumas estórias engraçadas da nossa infância, talvez tentando suavizar-te um pouco, relembrar-te daquilo que já fomos. “Não éramos nós, se calhar… Éramos pessoas diferentes, que morreram para dar lugar a estes adultos estranhos que somos. Falamos de coisas que se passaram há 25 anos… eu adorava aquelas crianças, mas que temos hoje delas?” – mataste, de imediato, as minhas tentativas, surpreendendo-me com o teu pessimismo e cinismo, mas deixando-me, ao mesmo tempo, a questionar a genuinidade do que dizias. Serias mesmo essa pessoa, ou rejeitavas agora tudo de bom que tivemos um dia, como eu próprio, no passado, fiz contigo, quando tudo era ainda muito mais fresco?

Assim, um pouco às cegas, e adiando o meu comentário acerca da tua aparente ideia acerca da nossa infância, expliquei-te que a razão pela qual tinha sido tão estúpido contigo era nada mais nada menos que o medo por aquilo que sentia.

- Hã? ‘Tás a falar de quê? – perguntaste, com um olhar crítico. Estava a custar-me a tua atitude, e não tinhas ainda baixado as tuas defesas. Fá-lo-ias de todo?

- Nós em crianças éramos como irmãos, Ana. Só que depois começamos a crescer e, basicamente, o que sentia por ti transformou-se de uma maneira assustadora. Como dizer… eu morria de amores por ti! – disse, com um olhar infantil e um sorriso sem resposta – E tu falavas-me dos rapazes e não sei quê, e que gostavas deste e daquele, e que tinhas trocado um beijo com alguém… e sei lá, p’ra mim era impossível ouvir isso – ias interromper mas antecipei-me – E eu sei que isso não, de maneira nenhuma, desculpa, mas por isso mesmo te digo que foi uma estupidez, sem sentido, e sei que te magoei muito, e não sabes como estou arrependido! – o teu marítimo olhar estagnou, apontando numa direcção que não a minha. Parecia-me que estavas a… ceder. Ceder na medida em que sentia que, paulatinamente, deixavas-me de ver como um intruso, ou um inimigo.

- Ai, Miguel, que és mesmo um parvalhão… – disseste, com um sorriso já não sarcástico, mas, arrisco-me a pensar, simpático.

- Vá lá, sabes que não. Fui um parvalhão várias vezes, com quem não merecia, mas pá… foi o que foi, e não há como o mudar. A verdade é que nunca te esqueci… A VIDA continua, sei-o bem, mas não fazes ideia de como fiquei feliz de te ver hoje, e poder, nem que seja apenas tentar, explicar-te o que se passou, e ter alguma paz de espírito.

- Ai, Miguel, que és mesmo um parvalhão pá. E burro! E cego! – hum? – Como é que é possível que não tenhas nunca percebido que eu sentia o mesmo ou até mais por ti do que aquilo que ti sentias por mim? - ? – Está claro que de vez em quando sentia uma ou outra atracção, mas a maioria do que te dizia era para ver se fazias alguma coisa, se dizias alguma coisa, para te fazer ciumento e, sei lá, estimular-te. Que estupidez… – disseste, incrédula. Já eu, não sei se posso dizer se me sentia incrédulo, pois a surpresa era demasiado forte, misturando estupefacção com incredulidade e todos os sinónimos possíveis.

- Não gozes Ana… ou estás a falar a sério?

- Claro que estou, burro! Acreditas que sempre me questionei e massacrei, perguntando-me milhões de vezes o que era que me faltava, porque não gostavas de mim e, claro, mais tarde, porque te tinhas tornado tão frio e estúpido comigo… – quando te ouvi dizer isto senti uma tristeza indescritível. É mau quando não temos o que queremos, mas como é tão pior sabermos que, afinal de contas, o podíamos ter tido…

- Nem fazes ideia como é estranho ouvir isso…

- Faço sim, acredita… se calhar fomos ambos muito estúpidos, tu apenas o manifestaste duma maneira pior…

O resto do jantar desenrolou-se de uma forma que me fez acreditar que tínhamos voltado atrás. Talvez seja mesmo possível viajar no tempo. Talvez o facto de não sermos já os jovens que fomos, não termos o que tivemos, não queira dizer que não os possamos revisitar e ressuscitar dentro de nós. Demorávamos a comer, demorávamos a beber, tudo para termos o máximo que podíamos ter de nós próprios, como se fosse possível, num par de horas, recuperarmos tudo aquilo que tínhamos perdido por medos de arriscar e erros de julgamento.

- E agora? – perguntei, após o cansado camareiro ter, subtilmente, expulsado os seus últimos clientes. Era meia-noite e meia, e a noite deitava-se sob Lisboa, num agitado descanso.

- Agora caminhamos. Levas-me a casa? – sugeriste.

- Só se for longe… – sorri. Caminhámos lentamente, agarrando o tempo e colando-as às palavras e memórias, conscientes de que aquilo que fazíamos nesse preciso instante seria, em si, uma bela e inesquecível recordação. Já não tinhas tranças, eu já não tinha as minhas calças rotas. Já não tinhas a pureza de que tanto gostava, eu já não tinha a irreverência que tanto te desafiava. Porém, terá de ser a mudança algo assim tão terrível? O quanto gostei de estar contigo diz-me que não. Quem sabe a mudança seja algo terrível de presenciar se o bom do passado que tivemos nos cegar com falsas promessas.

Quando chegamos a tua casa, as certezas que tinha acerca de não ter nenhumas esperanças contigo começaram a dissipar-se sem eu me dar conta. Era o momento. Não sabia bem de quê, mas sabia que era o momento. Era, outra vez, o menino nervoso sem saber se teria um beijo nos lábios, se um amigável abraço.

- Que fazemos agora? Estou mais uma vez às cegas… – admiti – Mas estou a escolher partilhar isso contigo, acho que é um progresso… – sorri. Desta feita, não sorriste de volta.

- Eu também estou um pouco às cegas… Como te disse foi estranho ver-te hoje. Não estava à espera e esta noite foi como que se me tivessem dado um abanão… Mas a verdade é que… Ai Miguel porque é que tinhas de aparecer hoje, assim? Quando uma pessoa pensa que finalmente tem tudo sob controlo aparece o passado a bater à porta, que coisa… – sentia que falavas mais contigo do que comigo, e esforçava-me por perceber. – Miguel, eu tenho um namorado! – soltaste, finalmente, sem dó nem piedade. Senti que sentias o mesmo que eu, ou não necessitarias, de todo, de marcar o momento com tal revelação. A desilusão que senti foi algo simpático. Como que um par de palmadas nas costas e um sussurro ao ouvido dizendo “paciência Miguel… no fundo já sabias que nada aconteceria…”. Assim, limitei-me a encolher os ombros.

- Claro… Paciência. Quando te vi pensei em tudo menos em voltar a ter alguma esperança em relação a nós… Só que depois, à medida que o jantar foi acontecendo, tenho de confessar que, mesmo sem querer, acreditei um bocadinho em alguma coisa… Há coisas que não mudam, não é?

- Não fazes ideia…

três

Foste para casa depois de um longo abraço e promessas de reatar o contacto. Eu fui a pé para a estação de comboio, de mãos nos bolsos e um sorriso nos lábios. Não era um sorriso triste, mas um sorriso pacífico. Seria pedir de mais, ter-te nessa noite como tive, com a oportunidade de pedir perdão por tudo o que fiz, e ter um futuro diante de nós. Quem sabe um desenrolar demasiado sonhado para ser real. Quem sabe um passado mais em paz fosse tudo o que eu pudesse ter. E, na verdade, devo confessar que me deixa bastante feliz. De certa forma sempre me perturbou, como que uma pedra no sapato, a maneira como (não) resolvemos as coisas. Era algo que queria que mudasse, e mudei. Quanto a voltar a sentir este tipo de paixão, senti-la respirar um pouco mais forte, e vê-la ser correspondida por ti… era algo que desde há muito se me tinha varrido. Assim, acho que numa noite tive o que desde sempre quisera ter, e perdi apenas o que por alguns minutos voltei a almejar alcançar.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Rita - Triste

Triste. Triste como um menino perdido. Tristes são as gargalhadas surdas que encosto à parede, o terrível som que se infiltra na minha língua, os lamentos desnecessários. Triste é não me querer ouvir. Ter dias debaixo da minha mão, segundos apertando a minha alma e fotografias dum futuro previsível.

Triste e agoniante. Mas belo. Como é belo. Como é bela a minha tristeza, como é belo o meu desespero e a minha entrega fora de tempo. Como amo, em segundos como este, o meu ser, a minha frívola ambivalência que nada mais quer do que tudo o que existe. Como amo a minha figura habilmente inesquecível, os meus cabelos cor de amor e os meus olhos de aroma adocicado.

Triste. Que seria de mim sem a minha tristeza? Um presente que nos oferecemos, um ao outro, um presente mascarado de um segundo, com o bónus da eternidade. Palavras perdidas algures dentro de ti, sensações em fúria pelo ar. Triste. Triste como tu.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Rita [Viajo]

As tuas mãos de seda embalam o meu sorriso escaldante. Viajo no tempo e tento estar contigo mais uma vez. Tocas no último sorriso que dei, beijas os meus cabelos ruivos e fazes-me promessas que não podes cumprir. Deito-me para trás e transformo-me em lágrimas feitas de pedaços nossos. Sinto-as ameaçar a nossa presença, sinto-as amaciar o teu cabelo, sinto-as morrer na tua boca. Uma mistura de misturas sinto dentro de mim. Uma mistura de tempos passados e presentes, tempos perdidos e imaginados tolda a minha visão completamente. A alteração da realidade não é suficiente, preciso de mais um pouco para poder precisar mais de ti. Preciso de precisar de ti ao ponto de me esquecer de mim, ao ponto de não querer viver senão na tua presença. Quero o nosso desespero, os sentimentos que me ensinaste a ter, as experiências que me fizeste ter. Não quero os teus avisos, quero apenas reviver a ilusão que tive até ao momento de partida. A realidade é tão forte quanto a impossibilidade de a sentir em pleno. Aqui, deitada, nua, com as minhas mãos a fazerem aquilo que já foi o teu dever, percebo como uma vez tendo experimentado o que me deste a conhecer, uma vez tendo-te experimentado, nada mais quero senão sentir-me como um traste que se acha acima de tudo e de todos, menos da imagem que estupidamente sobrevive na minha mente. A imagem de ti como a pessoa mais imperfeita que conheci. A imagem de ti como o materializar de tudo o que nunca quis, mas que uma vez tendo habilmente me deixaste perder.
Que posso dizer, se desde o início, tão eficaz e cruelmente me mostraste a tua versão da realidade? A versão de uma realidade que para mim nada mais era que um mau sonho distante. Não! Quero viajar no tempo. Que faço a pensar em ti agora, quando apenas quero estar contigo há algum tempo atrás? Tocas nos meus seios e a tua língua aquece a minha pele. Deslizas pelo meu ser com a ponta dos teus dedos, da maneira como só tu fazes, fazendo um arrepio colossal atravessar o meu coração. Sinto frio, muito frio, sendo esta sensação nada mais que o completo adverso do sentimento que a acompanha. O calor da tua pele imprime-se nos meus dentes, que apaixonadamente mordem a tua pele. Lambo o teu sangue licoroso e peço-te para entrares no meu mundo como quiseres.

Não consigo. Viajar no tempo é apenas eficaz quando o faço sem querer. Quando me atropelo em estranhos pensamentos e penso em ti sem dar por mim. Quando me dou conta, quando percebo que, pela milionésima vez nesse mesmo dia, ocupas a minha mente, tudo se torna subitamente vago e confuso. A tua imagem esvanece um pouco, a minha desaparece completamente, e o que vejo é uma mistura de borrões de tinta, uma peça a quem alguém chamaria de arte. Perco-te, mais uma vez.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Rita [Sentir]

PJ Harvey – A Place Called Home

Sabes que sim. Sabes que podes esperar por mim, e um dia voltarei. Espera, e faz qualquer coisa. Sente o que é ser, sente o desespero da distância, sente os segundos em que me ouves mentir, em que me ouves dizer que sou a tua… princesa. Sim, espera por mim, por favor, vá lá. Só quero dar mais uma volta. Gosto de te ter na carteira, ver a tua fotografia, abraçar-te sem fazer nada, saber que andas por aí. Continuas? Sim, faz isso por mim… fazes? Obrigado.

O dia hoje está quente. Penso nas vinte e três maneiras que tenho de fazer merda, de estragar o bom sentimento que tenho, de te enganar, ludibriar, de ser algo que não sou. Não sei como o fazer. Nem sei se tenho de o fazer. Talvez apenas vá viver mais um bocadinho, aqui e ali, sem necessariamente ser uma parva. Penso na necessidade de estragar presentes como estrago. Penso na necessidade de sentir a minha VIDA como fútil e inútil, na necessidade que me sintas como completamente tua. Porque jogo contigo como jogo? Dou mais um risco de coca e a minha mente esclarece um pouco. Os desejos dispersam-se e vejo melhor como foder o dia. Não sei. Não sei mesmo. Só sei que gostava de te ter aqui agora. Não esperes por mim… eu sei que acabei de pedir para esperares, mas porque é que em vez de esperares não apareces por aqui? Porque é que não entras por aquela porta verde e me dizes olá? Sei lá, era giro, e eu ficava contente. Ia gostar. Claro que ia mandar-te à merda, perguntar se me estavas a espiar ou a testar, mas ia gostar. Tu ias sentir-te triste e desiludido, e com razão. E mais uma vez, aproveitando-me, não da tua estupidez, pois não a tens, mas da tua ingenuidade, eu torceria a realidade daquela maneira tão minha, fodia tanto com a tua mente, que no final estavas a pedir-me desculpa. Sim, mas porquê? É curioso… porque é que eu ia ficar contente mas agiria como uma parva? Bem, posso sempre ligar-te e pedir para apareceres.

- Mas achas que vou apanhar agora um avião para a *****? – ouço-te dizer, na minha imaginação. Enquanto penso nisto, fumando um cigarro no meio do nada, penso que seria giro o desafio. Agrada-me e nasce dentro de mim o objectivo. Tentar manipular-te tanto que faça com que acabes por decidir vir ter comigo a *****. Não. Acho que esta não ia conseguir, e essa frustração ia-me deixar com um feitio de merda, tenho a certeza.

Vou para dentro de casa e bebo um copo de água. Vejo a minha pena. Vejo as folhas. Isto gosto. Sim. Gosto de escrever como um poeta há vinte e quatro milhões de anos. Estou a exagerar. Mas sim, gosto de viver assim, escrever, pensar, reflectir. Só não gosto tanto da maneira como me sinto tão bem quando desesperada. O que provoca em mim o desespero? Talvez a incerteza, a ignorância do futuro a curto prazo seja aquilo para que vivo, talvez o sentimento de desespero me aproxime um pouco mais da estúpida humanidade. E se a acho estúpida, porque me sinto bem em me sentir próxima? Isto sim, é curioso. Adoro esta confusão que sinto e vejo dentro de mim. Faz-me sentir especial, e sei que o sou. Sinto que possuo sentimentos que mais ninguém tem. Vejo-me como dona do destino terrestre, apenas porque rios de ideias correm dentro de mim.

Acabo o cigarro e pego na espingarda. Certifico-me que tem uma bala, e encosto a ponta à cabeça. Ponho o dedo no gatilho. Que bom, que maravilhoso é sentir a VIDA tão frágil, tão nada… Até faço um pouco de pressão com o indicador, e vivo este momento como a razão pela qual um dia nasci. Não sinto o desespero, mas um medo que me enternece e quase me faz chorar de alegria. Sinto como verdadeiramente incrível o facto de me sentir tão viva, apenas porque estou a um milímetro de morte. Como sempre, não pressiono o gatilho. Como sempre, nunca o planeei fazer. Como sempre, apenas gosto de sentir o que sinto quando com a morte tão perto, pois é quando sinto o meu coração bater mais forte. Mais forte do que quando estou contigo, mais forte do que em qualquer outro momento. Patológico, estúpido? Pois concerteza que sim, meu amigo, não tenho dúvida nenhuma. Mas eu gosto, e depois?...

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Olívia Sześć


Sześć

- Olá mãe! – cumprimento a minha amargurada progenitora, por quem nutro eterno afecto, mas de quem sentirei eterna pena. Quem sabe a combinação de um sentido observador, com o facto de ter tido muito que observar no meu próprio lar tenha resultado nesta minha decisão de viver sozinha. Corrijo-me. Na minha decisão de não viver obcecada com não viver sozinha.
- Olá filhinha, como estás? – pergunta, com aquele tom de tristeza que sempre me deixou um pouco irritada. Vejo na minha mãe as minhas amigas daqui a uns a anos, com a tristeza e as queixas como fonte eterna de conversa.
- Estou óptima! – sinto a nítida diferença entre o seu tom e o meu. Penso e volto a pensar, e não quero dizer porque me sinto particularmente… óptima.
- Ui filha, que alegria! Que se passa? – pergunta, curiosa. Se decidi não dizer a razão deste entusiasmo especial, sinto que foi um pouco tarde. Não lhe direi que estou interessada em alguém que vou ver esta noite. Usar na mesma frase palavras como “homem” e “noite” sempre deram a minha mãe, por um lado, falsas esperanças ao perspectivar um, finalmente, genro, e, por outro lado, repulsa com a maneira como certas pessoas – eu – se podem dar ao luxo de se divertirem sem pensarem duas vezes ou sem se irem confessar e purgar no dia seguinte.
- Nada, Piedade – nunca entendi porque trato a minha mãe pelo seu nome tantas vezes… – Que queres que te – nunca entendi porque trato a minha mãe por tu tantas vezes… – diga… Está bom tempo, sou jovem – quarenta e sete? – e a VIDA é bela! - nunca entendi porque o facto de ver o melhor em existir me afasta tanto da “normalidade”… Não sei se ajuda o facto de me ver como um mero personagem… Talvez a VIDA seja mais fácil e leve se imaginarmos que outras mãos as guiam que não as nossas. Não gosto de pensar em deus ou essas tretas, mas dum qualquer escritor carismático e charmoso, da minha idade, envelhecendo um pouco acima da minha existência, ao mesmo tempo que eu, enquanto fuma cachimbo e bebe Licor Beirão. Olívia!! Como é possível que te sintas excitada a pensar num escritor inexistente que escreve a tua inexistente existência?! Certo é que sei ser estranho, mas…

[certa ideia não me sai da cabeça…]

Quando termino a chamada, agradeço à Dona Manuela, que trabalha na secretaria do liceu onde trabalho, e vou dar a última aula, para depois ir para casa. Vejo a uma hora de distância um banho de imersão muito prazeiroso e os preparos dum jantar para o qual, sem querer, tenho algumas expectativas. Lanço para a cara dum estranho um sorriso tímido mas atrevido, ao sentir alguma vergonha do quão longe vou nos meus planos e ideias acerca do charmoso Eduardo, meu colega e professor de Português.

Fecho a porta atrás de mim e a primeira coisa que faço é espalhar o perfume do senhor Ray Charles pela minha casa. Reparo nas paredes beges, escuras quem sabe pelo fumo do tabaco, e penso em mudar isto e aquilo… Deixo a minha bolsa da mesma cor das paredes cair no sofá da mesma cor da música que ouço e dispo-me. Ao som de Walkin’ & Talkin’, entro na banheira, levando comigo um copo e uma garrafa de Rosé Sul-africano, o melhorzinho. Encontro-me sem fuga possível, e a ideia que não me saía da cabeça toma conta de mim. Enquanto a banheira vai enchendo, deixo as minhas mãos percorrerem o meu corpo já denunciador da idade… imagino o meu escritor… alto, mãos poderosas e calejadas, olhos verdes e cabelo grisalho. Faço dos meus dedos as suas próprias penas, e massajo-me com calma e cuidado, adiando com sabedoria o culminar do prazer, o orgasmo que, quem sabe, me deixa mais perto do meu próprio criador por uns instantes. Mergulho bem fundo, tanto o meu corpo na água quente, como os meus escaldantes dedos dentro do mesmo e, imergida em tudo o que sou, permito-me afogar-me um pouco em prazer. Não foi longo, mas maravilhoso. Sorrio e mais uma vez sinto-me lançar aquele sorriso tímido. Não por sentir vergonha alguma em me satisfazer, mas por imaginar, com prazer, as caras das minhas amigas se lhes contasse como conhecia os cantos e recantos de mim mesma.

X +2h30

Meu deus, Olívia, meu deus!! Como é possível que sejas tão tonta?

Felizmente nunca fui, ou se fui, desde há muito tempo que não sou, de me afundar em misérias e tristezas, preferindo levar, tanto quanto possa, as contrariedades com um sorriso. É por isso que, saindo de mim e vendo o que se está a passar, devo confessar que me desmancho a rir! Autor, meu querido autor, como me pudeste pregar uma partida destas?
Vejo-me sentada, bela. Não pareço mais nova, tampouco mais velha. Não pareço nada mais, nada menos, do que aquilo que sou. Madura, bela, sedutora e sabida. O meu vestido vermelho não chega a ser provocador, mas arrancaria uns olhares de escárnio por parte das mais puras das almas. Uso na cabeça, quase como bandolete, os meus largos óculos de sol que nunca abandono. O meu queixo repousa na palma da minha mão direita, cuja extremidade aguenta um cigarro beijando uma boquilha negra. O meu ar… sinceramente não sei bem como identificar, ou definir o meu ar, sendo que sei o que sinto e vejo isso como algo que me impossibilita o distanciamento necessário para um julgamento mais preciso… Pareço atenta, quem sabe, mas com um leve toque de surpresa. À minha frente vejo Eduardo, que fala animado sobre o clima político fervoroso que se vive na actualidade. Volto a entrar em mim, já vejo o que os meus olhos alcançam, e acima de tudo sinto o que a minha mente não conseguiu antecipar. Facto é que vejo em Eduardo alguém muito bonito, simpático, mas que é um paneleiro de todo o tamanho! Como é que é possível? Que seja paneleiro, não me interessa, sabe o autor as coisas que já fiz e me fizeram, noutros tempos, mas como é possível que me tenha escapado tal facto? Os seus pulsos ondulam como quem faz tricot, fala como se precisasse de dizer as letras todas e estivesse constipado, e de vez em quando solta uns agudos que me fazem sentir um júri numa escola de canto para meninas… Vislumbro, na minha imaginação, os seus agudos no vidro do meu pobre copo, à beira do cataclismo vocal…
Talvez para salvar o sagrado recipiente duma rachadela fatal, talvez para me ajudar, com um pouco mais de álcool, a esquecer esta surpresa, agarro o néctar, que bebo dum só gole. Ainda penso se lhe devo dizer, ou não, que estava interessada nele… pensando bem, ele pode até não ser p... homossexual, mas a verdade é que homens efeminados, por mais que possam gostar de mulheres, nunca me atraíram sobremaneira. E isso, naturalmente, faz com que a probabilidade de eu acabar na cama com ele seja parecida com a de ele começar agora a falar de futebol e gajas… Não vai acontecer! Sempre gostei de homens fortes e viris, que tentassem mandar em mim, mas sem realmente o fazer. Que se chateassem, praguejassem e berrassem, mas que passado meia hora estivessem dentro de mim a dizer que me amavam, ainda que não o fizessem. Infelizmente, este meu, quem sabe, estranho gosto por homens, fez com que não consiga arranjar ninguém, pois na altura em que vivo, no país onde vivo, a distância entre um berro e um par de estalos não é mais que uma nuvem e um aguaceiro. Quando um existe, ainda que a consequência nem sempre apareça, a ameaça está sempre presente. E sabe o autor o quanto eu estou disposta a me dar ao luxo de ser miserável…

- Bem, Eduardo, está a fazer-se tarde, sabes? – sugiro, pensando ao mesmo tempo que, uma vez ultrapassada a surpresa e a desilusão, seria bom sermos amigos. Sempre adorei amigos gays!
- Óóóó queeerida! – ai Eduardo, ai… - Já vai? – pá, desde o primeiro momento que te trato por tu e ainda não saíste dessa? Sinto-me começar a culpá-lo pela minha própria surpresa, quando ele não tem culpa nenhuma…
- Olha… antes de mais, trata-me por tu, por favor, porque eu já te conheço, e vendo que és uma pessoa muito simpática e porreira, tal como eu, – sorrio – acho que não faz sentido que assim não nos tratemos. Depois, eu tenho de ir, sabes, é que estou um bocado cansada. Mas olha que adorei – blá blá e isso tudo…

X + 3h30

- Um café, por favor – peço ao simpático empregado, que me responde com um aceno. Estou na Brasileira. Como me sentia ligeiramente tocada pelo champanhe, decidi não ir de imediato para casa. Nem me preocupei com o facto de me poder encontrar com Eduardo, arranjaria uma desculpa qualquer. Creio que, na verdade, talvez esteja a antecipar um certo sentimento… A surpresa algo piadética que senti, as risadas que dei dentro mim… vejo-as, de certa forma, como uma possível escapatória para a tristeza e a desilusão que receio começar a sentir, uma vez que acalme. A minha mente leva-me para quando o meu querido autor me decidiu presentear com uma alma gémea, e a maneira cruel como a retirou de mim, e como desde então me resignei perante a ideia de uma impossibilidade em arranjar alguém. Acho que é impossível resignar-nos verdadeiramente com alguma coisa. Lado a lado com a resignação, caminha o sentimento de estagnação e morte. Talvez eu tenha simplesmente confundido as minhas palavras, tenha falhado como me exprimir, ainda que de mim para mim. Talvez usemos com frequência o termo resignação, quando no fundo o que queremos dizer é que continuaremos a procurar, mas já não estamos propriamente aos saltos no sofá perante a mais leve ideia de que possa correr bem… Enfim.

X + 4h30

A cama vazia é algo com que poderei sempre contar. Tento controlar a tristeza que antecipei, e deixo um ameno sorriso espalhar-se no meu espelho. Olívia, tu és quem tu és! Toda a gente, no seu interior, gostaria de ter muito do que tens, de quem és! O facto de eu não ter, ainda que não o queira admitir, algo que outros têm no seu exterior, como uma companhia, talvez valha a pena para ter o que tenho, no meu interior, e que os outros querem ter, ainda que não o queiram admitir. Que estranho equilíbrio, autor…

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

K.I.S.

Sinto palavras que quero dizer acumularem-se na minha mente. Aos pontapés lutam por um lugar, por um materializar de tudo o que não sinto, de tudo o que sinto e não quero sentir, de tudo o que não sei nomear… Deixo a tocar uma música qualquer de Zero 7 e saio à rua para fumar um cigarro. O tempo, que merda de tempo… Tento não sair demasiado, fazendo apenas os possíveis para que não me molhe. Vejo a chuva rebentar no chão, misturando-se de certa forma com estranhas gotas de alguma coisa dentro de mim.
Saio do meu corpo por uns instantes e entro no vendaval diante de mim, criando uma certa harmonia com os furacões que sinto vasculhar os cantos da minha mente. Vejo-me de braços abertos, imune aos carros que, cansados, passam à minha volta, imune ao frio solitário, imune a tudo menos aos pensamentos de que não me consigo livrar.
Debaixo dos meus pés o alcatrão que, mais cedo ou mais tarde, me levaria até ti, sejas tu quem fores. Penso quanto tardaria a chegar até ti, se me deitasse a correr o mais rápido que pudesse. Quem sabe, imune fosse eu também ao cansaço, estaria do teu lado mais cedo do que imagino… Quem sabe, se tudo fosse um bocadinho diferente, se cada um de nós fosse um bocadinho diferente nunca teria de deixar de te ver. Quem sabe… quem sabe se eu não fosse bom a escrever não escreveria esta merda que nada me faz senão afundar-me mais na profunda inocência do não-saber…

Sento-me na cama, sento-me na secretária. Penso nas palavras que me disseste e questiono porque será que tudo tem de ser complicado. A inocência do não-saber… a inocência de não saber o que te dizer, de mal saber o que me disseste deixa-me encurralado, fechado num canto algures dentro de mim, sem saída possível senão um terrível silêncio que me assusta mas que me seduz. Repito para o ar as palavras que me ofereceste da última vez que nos vimos, daquela vez em que te devolvi apenas um misterioso e sensual sorriso, que nada mais era que o único disfarce que tinha para devolver, face a minha total ignorância e inabilidade em perceber os teus significados nem sempre precisos.
Penso no quão estúpido serei, penso se será normal que veja com tanta dificuldade esta empreitada de perceber as mensagens escondidas nos lábios de uma mulher. Dou uma olhada ao meu passado e revejo as vezes que me deitei acompanhado. Não as consigo contar… 31 anos de existência e um palmo e meia de cara fizeram com que tenha acumulado um número confortável quando partilhado em banais conversas de café. Porém sinto que, ano após ano, fico cada vez mais estúpido. Já não salto para relações, já não salto para ninguém, porque desta vez quero acertar…
Desta vez quero acertar e isso faz-me pensar como, tantas vezes no passado pensei ter acertado em cheio, quando estava profundamente errado. Faz-me pensar em como era tão brilhante não pensar, entrando, mergulhando em cada alma leve e descontraidamente, procurando com leviandade uma outra parte de mim que, com um sorriso me dizia para continuar a procurar. Agora quero acertar, e ouço as palavras que me dizem com uma atenção que nem sabia ter. Dou voltas e mais voltas à minha cabeça, dou voltas e mais voltas às frases que me dizes… penso, mais uma vez, se estarei mais estúpido e me estará a escapar o óbvio, apenas para, cedo, perceber que não… simplesmente esta inocência do não-saber manifesta-se tardiamente, fruto de demasiados dias ao sol, de demasiadas fugas de mim mesmo, de demasiadas demasias…
Sinto-me como um professor que não sabe ler, e isso mata-me por dentro. Sinto que posso escrever o que quiseres acerca do que sinto por ti, sabendo eu que te deslumbrará, mas sinto que não o sei fazer se o quero relacionar com aquilo que sentes por mim… porque não faço ideia… Penso na tua cara e nos gestos que me lançaste, misturo com as tuas palavras o resultado apresenta-se insolúvel…

- Alexandra, tudo bem?
- Tudo óptimo Luís! E contigo? – responde, do outro lado da invisível linha. Entusiasmo, marasmo? Não sei, mas parece-me entusiasmo… Desde quando sou este conas que questiona um mero cumprimento?
- Queres ir tomar café?

Quando chega à minha beira traz consigo a usual atitude mais ou menos indecifrável. Como pode ser algo mais ou menos indecifrável? O seu aroma é o mesmo, o seu tom de voz o mesmo, tudo é o mesmo menos eu que, nervoso, me levanto para a cumprimentar, batendo com a perna na mesa, derrubando uma chávena de café na sua bolsa de pele branca. Tento perceber a sua reacção como nada mais do que aquilo que vejo. Uma expressão de surpresa, seguida de um descontraído sorriso e um levantar de sobrancelhas que me diz que está tudo bem, para não me preocupar.
Os primeiros minutos passam problematicamente. Quando há tanto que se sente, tanto que se quer dizer, cria-se como que um engarrafamento emocional, funcionando nós apenas em auto-piloto, que nada mais sabe do que falar do tempo, trabalho e, por vezes, no caso das versões mais actualizadas, da última semana. Deixem o auto-piloto a falar de sentimentos e o choque é certo. Contudo, uma vez ultrapassada esta desconfortável congestão, algo mudou. Não sei se Alexandra reparou na minha atrapalhação e decidiu ajudar, ou se eu próprio de repente subi de escalão… ou se a cerveja ajudou… Quem sabe um pouco de tudo.

- Então, Luís, explica-me lá a tua confusão… – diz-me, passado um pouco, quando se volta para mim, depois de pedir um whiskey com seven-up. Apanha-me um pouco de surpresa.
- Bem, posso dizer-te, desde já, que me sinto confuso em relação ao teu pedido.
- Não é bem, um pedido, talvez uma… sugestão.
- Pois, acredito perfeitamente… E, como vês, está à vista a minha confusão. Mas jogos à parte, que queres dizer mesmo? – pergunto, fingindo não perceber o que quer dizer, ou esperando que eu esteja enganado com a minha própria interpretação.
- Pá… apetece-me dizer-te, sugerir-te, ou mesmo pedir-te para te deixares de merdas, porque sabes muito bem do que estou a falar, mas
- Repara que estás a dizê-lo sem o dizer – interrompo, a meia voz.
- … mas vou alinhar e explicar-te direitinho. Ok, não direitinho, mas mais ou menos. Sabes que te vejo como um enigma… Desde que te conheci, ainda que apenas soubesse o teu nome e tu o meu, e nada mais, que sempre te vi a mexer-se nestes meios como um pássaro no céu. Mas comigo vejo-te muito estranho!
- Estranho?
- Sim, estranho. Fazes cara de puto envergonhado sempre que nos encontramos. Isso é o quê? – penso que rumo quero tomar com esta conversa. Vejo duas nítidas e distintas opções. Do lado esquerdo a consequência misteriosa fruto da verdade como antecedente… do lado direito o controlo da conversa pela manifestação da ausência de controlo em relação ao seu tema.
- Não sei… – parece a opção da direita, mas na verdade é a da esquerda… – Contigo tenho reacções e… sentimentos que não tive dantes, e isso deixa-me um bocado… atarantado, digamos. Talvez isto de não saber o que fazer passe como misterioso, não sei… e repara que estou a ser muito sincero agora, não sei porquê…
- Pois, estou a ver… – sinto a sua expressão comunicar mais do que ela me quer mostrar. Por uma vez, creio perceber exactamente o que vai dentro de si. Vejo uma certa desilusão… – Engraçado como continuas a ser diferente, mesmo quando pões a nu a razão pela qual tens sido diferente até agora… Gosto! – diz, com força, os olhos brilhantes. Percebo ter errado, afinal, na minha interpretação – Que sentes, então? – começa a fazer-me confusão a conversa, facto que decido partilhar…
- P’ra ser sincero, sinto-me meio desconfortável com esta conversa e apetece-me mudar de assunto… não que queira mesmo, mas apetece-me, e sinto-me meio estúpido por isso…
- Porquê?
- Porque é que me sinto desconfortável com o tema, ou porque é que me sinto estúpido em querer mudá-lo?
- Ambos.
- Pá… Sinto-me desconfortável porque, para ser sincero, nunca tive este tipo de conversa com outras mulheres. Não só nunca me senti assim meio desamparado como me senti, ou sinto, contigo, mas também, e especialmente, nunca falei destas m… coisas. Nunca me pus tanto a nu, como dizes, se é que percebes… Sempre foi muito mais fácil manter o assunto em temas superficiais e divertidos, como se… – faço uma pausa, para me organizar um pouco, perante o olhar atento de Alexandra – É assim… se calhar não somos todos tão seguros como gostamos de mostrar que somos. E se mostrarmos apenas aquilo que queremos mostrar, que está sob controlo, talvez possamos manipular melhor a opinião que se forma acerca de nós… – desta feita a pausa que faço não é para me organizar, mas espero, apenas, ouvir a sua opinião. Quando se mantém calada, percebo que não respondi à segunda questão – Sim, claro… e a razão pela qual me sinto estúpido com o facto de querer mudar de assunto é que… talvez ficasse melhor, ou mais confortável, vá lá, por agora, mas isso era só mais uma escapatória, e daí que diga que, ainda que me apeteça, não quero!...

Quando acordo, na manhã seguinte, ainda não percebo muito bem o que se passou na noite anterior. Levanto o braço de Alexandra, deslizo pelos seus lençóis verdes claros, e vou preparar um café. Tenho alguma dificuldade em perceber como é que, precisamente quando penso que estou a perder toda e qualquer hipótese de alcançar bom porto, vejo-a sair da sua cadeira, sentar-se no meu colo e beijar-me. Incrível! E o mais incrível é que o beijo foi terrível! Sentia-me tão à vontade em manifestar o que dentro de mim ia que decidi não parar, e aquele beijo foi a mais simples e crua manifestação da minha surpresa. Eram dentes por todo o lado, baba e sorrisos. Sim, talvez não tenha sido assim tão mau…
Sinto-me contente e divertido. Depois da conversa de portas abertas que tivemos, passamos para si, e depois para um milhar de temas. Incrível como as coisas podem ser tão simples uma vez que nada se queira ser senão o que realmente se é. Quando me senti perto de a perder, descobri estar errado. E uma vez que descobri o caminho onde me encontrava, nada tinha a fazer senão explorar a nossa compatibilidade da maneira mais natural possível.

Vejo as palavras que atravessam a minha mente como mais simples. Sinto-me mais organizado e menos desesperado. Interessante. Não sei, nem faço ideia, o que será de nós, mas sei certamente que nunca me senti tão perto de alguém como de si na noite anterior, e nesta manhã, ao acordar. Não memorizo estratégias, não aponto truques. Não penso em nada senão na simplicidade a quem tantas vezes pedi para desaparecer.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Escolhas

Não sei bem o que fazer agora. Que pena é que a VIDA não venha com um manual de instruções… Olho à minha volta. A destruição que vejo ao meu redor entra em combate com a paz que ganhei nos últimos dois anos e que tento fazer permanecer. O peso da solidão faz-se sentir, mas tento, ainda que por vezes em vão, combatê-lo, com o tão útil “agir como se” (tudo estivesse bem), que vai perdendo as suas forças. O desaparecer do sentimento de isolamento no mundo está à distância dum par de telefonemas, dum par de pedidos. Sento-me na cadeira e penso no paradoxo que é o facto de sentir que a única maneira de não me sentir tão só, neste momento, seria entregar de novo a minha VIDA ao destino cruel de uma agulha qualquer. Com tudo isso vêm os “amigos” de novo, e o sentimento de solidão é mascarado com pessoas que procuram o mesmo, ou com um tiro de heroína, que não o mascara mas o afoga, assim como o faz com todos os restantes sentimentos. Penso se quero sentir o que sinto, ou se prefiro voltar a não sentir. Encosto-me para trás na cadeira, acendo um cigarro.

O tratamento por que passei acabou faz uns anos… Depois de sair, a ilusão de que estava completamente curado ainda se prolongou por algum tempo. Diria mais do que o esperado, mas se esperasse que acabasse, não seria grande ilusão, creio, mas a consciência de que aquilo que se sentia não era real. Na verdade, desde o primeiro dia até um dia qualquer (que vivi há pouco tempo) vivi acreditando que a droga fazia parte apenas do passado, sem me aperceber que, na medida em que o passado faz, por mais que não queira, parte de mim, da mesma forma a substância milagre também o faria. Nunca tive problemas com a bebida, ainda que tantas vezes mo fizessem acreditar nisso enquanto em tratamento. Nunca percebi muito bem. Não tanto os técnicos, mas os meus colegas residentes, pelo facto de terem problemas com o álcool, pareciam não perceber como outras pessoas, também toxicodependentes, não teriam necessariamente que ter. Certo é que me encharcava uma ou duas vezes por semana, mas nada do outro mundo, nada que uma pessoa “normal” não o fizesse. Sim, normal. Porém, apesar de, como dizia, não ter tido nunca problemas com o álcool, ainda me mantive longe da dourada tentação por alguns meses, prolongando o recorde longe dos copos para 30 meses.

- Se já estiveste tanto tempo longe e tens estado bem, para quê beber, Niklas? – dizia-me um jovem vestido de branco, sentado no meu ombro direito.
- Niklas… sabes que beber nunca foi algo com que tivesses problema, e ainda assim já andas sem isso há mais de dois anos! Para quê continuar? Não achas que já provaste algo a ti mesmo no que a isso diz respeito?! – contra-argumentava o ardiloso personagem empoleirado no outro ombro.
Acabei por dar ouvidos ao diabinho, e numa saída com alguns dos poucos amigos que mantive, atrevi-me a beber uma cerveja. Recordo-me do desgosto terrível e incompreensível que senti dado o primeiro gole. Falando racionalmente, creio que não foi, efectivamente, algo terrível ter recomeçado a beber… todavia, algo dentro de mim ruiu, algo muito frágil e pequenino, mas que deixou mais frágeis outras estruturas cujas fraquezas sofro agora. Bem, já não sei se falo racionalmente ou não. Sei que não estava bem preparado para isto…
Continuando… depois dessa noite, em que me emborrachei fortemente, outras noites vieram. Cheguei a assustar-me com o meu padrão, pois nas primeiras duas semanas fi-lo com muita frequência. Felizmente, depois destes 15 dias de festa e inconsciência voltei a um ritmo, suponho, aceitável. O que não foi aceitável foi o que veio de seguida.

- Nem penses!! – dizia o anjinho, nem se esforçando sequer com mais argumentos.
- Niklas, sabes que o teu grande problema era a heroína… e daí tens de te manter afastado. Mas um charro de vez em quando nunca te fez mal. E se não te aliviares com uma moca aqui e ali, vais começar a flipar e vais querer algo ainda pior que alivie esse flipanço… – “estou fodido” – pensava eu próprio ao ouvir estes dois argumentos, de alguém que me queria um desprazeiroso bem, contra alguém que me queria um prazeiroso mal. O pior era que a minha indecisão entre estes dois lados da acção deixavam-me numa ansiedade terrível, e esta ansiedade fazia-me pender nitidamente para o alívio dado apenas por um bom charro… Estranho como apenas se cem por cento certos de algo o “bem” pode vencer, e como a indecisão joga tão favoravelmente para o outro lado. Na verdade será sempre mais fácil estragar do que criar, ou manter algo bom, isso não é nada de novo, sabemo-lo bem…

Apesar de nunca ter percebido muito bem a necessidade que nós, não apenas os toxicodependentes mas os humanos em geral, temos de testar os nossos limites, aprendi em tratamento que não teria de o perceber, desde que jogasse pelo seguro, tendo sempre em mente que a recaída poderia estar à espreita em qualquer esquina, caso não jogasse as cartas certas. O jogo de que disponho não é mau de todo, mas tenho poucos ases. Sempre achei que se não fizesse bluff e jogasse pelo seguro poderia sair a ganhar. Mas a piada de viver sem o bluff é algo a que nunca me habituei, e quem sabe nunca me habituarei.

Sentindo todos estes receios, e necessitando de um aliado ao anjo que lutava, no meu ombro, por se fazer ouvir, marquei um café com Bjornstein, para que pudesse contar o que se estava a passar, os passos estúpidos que estava a dar e pedir ajuda para evitar que acabasse onde sempre acabou.
- Como estás? – perguntei-lhe, assim que o vi, quase não lhe dando espaço para ser o primeiro a o fazer. Sinto-me algo irrequieto, batalho com a necessidade de lhe contar que estou a um passo dum charro, a alguns de males maiores… Quero contar, mas ao mesmo tempo tenho um estúpido receio de estragar a imagem perfeita que tem de mim, de não ouvir mais os rasgados elogios que me tece, com que adorna o meu percurso na Comunidade Terapêutica…
- Estou bem, muito bem, felizmente! – respondeu, cheio dum energia que apenas me fez querer espancá-lo. Sinto-me mal com sentir isto, mas a inveja que senti deixou-me quase tonto. Vi-nos a nós os dois, sentados no Mono, um cheio de confiança e com tudo a correr perfeitamente, e outro, eu, sem saber o que se passa, porque se passa, e acima de tudo, o que se passará. – E tu, como estás? – devolve. Quero dizer o que vai dentro de mim, mas não consigo. Não quero verbalizar a minha estupidez. Quando se vive constantemente a fazer merda, é-nos estranho começar a agir bem… é-nos estranho pois ouvimos palavras que não sabíamos já existir… Palavras de afecto, incentivo, de amor. O espanto é tão grande que somos inundados por um medo terrível de o perder, como cada elogio e prova de afecto seja a constante lembrança de que só temos mais uma oportunidade, mais uma cartada, e já a jogamos… Nem o simples facto de ter aprendido a pedir ajuda me salva. Vejo tudo e todos, a excelente equipa técnica com quem trabalhei, a pedirem-me para eu pedir sempre ajuda, e da maneira mais estúpida e inconsciente, dou voz apenas ao que quero ser, esquecendo quem estou realmente a ser…
- Estou bem, corre tudo perfeitamente, se queres que te diga! – ouço estas palavras abandonar a minha alma, ditas de uma forma impressionante. Tal é o meu entusiasmo que quase me acredito no que digo…

Ficamos por ali cerca de uma hora mais. Niklas bebeu uma Coca-Cola e eu, apesar de me apetecer uma cerveja, fiquei-me por um café. Não falamos muito mais acerca de como estávamos ou deixávamos de estar, e devo confessar que foi bom, pois consegui, ainda que por momentos, afastar-me um pouco de mim. Nada como a capacidade de não pensar…
Foi nessa mesma noite que chegou o momento. O momento em que vi que ainda que a droga fizesse parte do passado, nem por isso deixava de ser parte de mim… e que se assim era, um charro apenas por ínfimos e insignificantes instantes faria parte do presente. Uma vez acabado, quem sabe conseguisse arrumá-lo, quieto, na gigante caixa na minha mente, que era a caixa do passado.
Não me senti arrependido de imediato. Não precisei de mais que quatro passas para me sentir instantaneamente a voar. Os meus braços ficaram mais leves, o meu cérebro mais frio, os meus temas de conversa mais sem sentido. Porém, toda esta ausência de sentido e todo o reviver destas sensações foi algo que apenas me fez fumar mais, e mais, e mais, até que adormeci no sofá… Quando acordei não sabia onde estava. Recordava-me com dificuldade de como tinha ido parar àquela festa, àquela casa, àquele charro…
Se dantes, das primeiras vezes, me sentia bem e como um menino rebelde, desta vez fui acompanhado até casa por um sentimento de culpa pesado e lúgubre. Tinha ansiado por este momento. Todos temos um mecanismo de auto-destruição, e funcionando movido por esse mesmo mecanismo, antecipava e rejubilava com esse sentimento de culpa que me deixa com uma dor inconfundível no peito. Todavia, uma vez que vem, não tenho como dele me livrar. Sinto como a desilusão personificada, como alguém sem valor nem direito à felicidade. Sinto-me, acima de tudo, profundamente assustado, pois sei onde estes tipos de sentimentos geralmente me levam…

Não quero ver ninguém, não quero ver nada senão a minha parede nua que nada tem para me oferecer. Sinto-me já recaído, sinto que o vou fazer a qualquer momento, e sendo assim, penso porque não o fazer de imediato? Porque não ir directo ao assunto e não sofrer mais? Porque não acabar com estes pequenos passos e entregar-me de uma vez por todas. Tremo bastante, sinto-me nervoso, ansioso, excitado. Vou ao quarto de banho, estou branco como a neve, tenho uma expressão de pavor que me leva para o passado. Tanto tempo, tanto tempo! Não posso ter passado tanto tempo para sair, e apenas um par de semanas para voltar a entrar. Preciso de ajuda mas não a quero ter, ninguém me consegue ajudar! Vomito o pouco que tenho no estômago, sento-me no quarto de banho a tentar reunir-me por uns segundos. Levanto-me, tenho a porta à minha frente. A porta vai levar-me à estação, o meu olhar vai pedir tudo o que preciso por mim. Tenho a porta à minha frente e o meu telemóvel dentro do bolso. Penso na ajuda que não quero ter, penso que tenho de decidir. Talvez dramaticamente, vejo a minha VIDA reduzida a duas opções, reduzidas a um pequeno momento, que está a acontecer agora mesmo. Não é o passado, não será o passado mas um presente lamacento que se estica, misturando tudo de uma forma agoniante. Escolho.

- Bjornstein, preciso que venhas aqui, não estou bem…

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Rita [Foste]

Agora foste. O que me separa de ti é um não-saber. Uma nova etapa dentro desta pequena fase. Em pouco tempo tanto vivemos. Subimos, descemos, subimos… Tudo aos tropeções, tudo ao sabor do momento, nunca do destino. Em cada partida sempre um “até já”, apenas para hoje te ver ir e pensar num “até”…

É estranho. Ouço a nossa música, quase sem querer, e sinto aquela tristeza, já não tanto a quentinha, mas aquela um pouco mais fria e inquieta. O dia, como tem de ser, vestiu-se a condizer, e brinda-me com pesadas e sombrias cinzentas nuvens, apenas a adornar a realidade. Bem, assim o é, assim o será.

Longe de casa, quem sabe estaremos mais perto de nós, para o melhor e para o pior, para o que der e vier. Tens diante de ti meses de loucura, eu tenho diante de mim anos de algo que ainda não sei bem o que é.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Rita

Pego numa flor, cheiro. Abro tudo o que posso de mim e deixo-a mergulhar no meu olhar com intensidade. A tontura que sinto em nada se assemelha à loucura que é respirar outro ser. Passeio lentamente pelos campos ingleses e viajo com a palma das mãos deslizando entre os pequenos arbustos. O frio que sinto é estranho e desconfortável, mas ao mesmo tempo apelativo. Pede-me para ficar, pede-me para ficar duma forma que nem entendo nem me esforço por entender. As palavras por vezes fazem mais sentido quando desprovidas de lógica nem verdade. Deito-me nas tuas palavras perdidas e adormeço, saltando de planeta em planeta até estar junto de ti.
.
Sonho. Sonho algo que passou, aconteceu, tive e não terei. Sonho com os meus próprios olhos cor de fogo, alegres e tempestivos, beijados pelo teu toque caloroso. Vejo-te a ver-me, olhar para os meus longos cabelos ruivos, a minha pele branca e feroz, o meu olhar perdido e nunca inocente. Vejo-te aproximar de mim, esticar os braços e pedir um ou dois segundos. Sem roupa nem pecado entrego-me a ti, viro do avesso as promessas do tempo, tomo as piores decisões e embriago-me das tuas lágrimas.
.
Acordo. A luz morre lentamente, o sol escapa-se um pouco, segundo a segundo, até desaparecer completamente, deixando um aroma não mais de frio confortável mas gélido e desesperado. Não tenho nada a fazer senão voltar para casa. A flor que cheirei, que matei, jaz nua no chão, ao meu lado, tremendo com questões, questionando o meu tremor.
.
Açambarco tanto quanto possa de tudo o que o mundo tem para me dar, na esperança de que esta overdose de sentimentos, ideias e sensações me possa fazer esquecer por alguns segundos a tua imagem cruelmente vincada. Nada sou senão o nosso passado.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pedro [Tristeza]

Há tristezas que são quentinhas. Como que um cobertor leve e confortável, mascarando-se de um par de dias, de um par de horas. Afunda-nos apenas o suficiente para podermos pensar com outra mente. Encolhemo-nos um bocadinho e, do nosso novo canto, podemos ver quem somos duma forma mais apurada, mas ainda assim enviesada. Vemos algumas coisas que fazemos, que somos, como estranho e sem grande sentido. Como é uma tristeza apenas quentinha, como não é fria, gélida, permite-nos sorrir como quem não quer a coisa, achar-nos piada, achar-nos um bocado estúpidos mas ingénuos.
.
Ouve-se, classicamente, uma música nada alegre, para prolongar mais um pouco o sentimento que dizemos não gostar de sentir. Deus nos livre de admitirmos que por vezes gostamos de estar tristes. Seria terrível… sorrio. Fecho os olhos e deixo a melodia amarelada entrar por mim adentro. Encosto a cabeça na parede de estranha tinta atrás de mim e deixo-me levar, por uns segundos, para dentro de mim. Às vezes, uma parte mais preguiçosa de mim gosta de não gostar da euforia. Tudo seria muito mais fácil se tivéssemos apenas um caminho a seguir. Deus, que seria de nós apenas com uma estrada, sem decisões… Entendo estes meus pensamentos. Não fico assustado, ou nervoso, porque sei que deixar em palavras questões que apenas esporadicamente me habitam não me acostumará a esta normalidade aborrecida. Sei que daqui a uns segundos, minutos, horas, a alegria do não saber voltará, como sempre o faz. Mas… que dizer? Por mais fortes que nos sintamos em relação a uma ideia, a uma filosofia ou modo de estar, que significaria se não o questionássemos de vez em quando? Não seria algo cego e sem sentido? Que são das ideias sem questões? E a minha questão de agora prende-se única e exclusivamente com a infinidade de estradas que vejo, ou gosto de ver, diante de mim. Vejo estender-se à minha frente mil e um futuros, cada um me seduzindo por diferentes razões, cada um me afastando terrivelmente. Sei apenas que não escolherei não escolher. Sei apenas que, faça o que fizer, sempre o verei, em mim, como ir para algum lado, mais do que fugir doutro sítio qualquer. Ai, não sei… É estranho quando certas certezas que temos de repente decidem que afinal… não é bem assim. Mas como sabe tão bem ter razões para esta tristeza quentinha… Como sabe bem saber que temos tudo à nossa frente… Não interessa a idade, o quando, o porquê… Nada interessa senão o tudo de que nunca abdicaremos. Vejo esta tristeza quente como a irmã e amante incondicional da euforia da indecisão. Abraça-me e não me deixes, ou deslizarei a caminho da nulidade de tudo saber…

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Não Sei

Que saudades tenho do mundo que inventámos… Posso dizer-te com precisão a última vez em que te vi, o último beijo que te dei, o último passo que dei nessa fantasia, caminhando em direcção ao sempre conhecido. Vivo, neste segundo em que escrevo, ora no passado ora no futuro, seja na última vez que te sorri, seja na próxima que me sorrirás.
.
Tenho saudades da complexa simplicidade da dimensão que inventamos segundo após segundo e onde mergulhamos sem pensar no que pode acontecer. Mergulhamos fundo, bem fundo, sem nunca saber se o ar nos nossos pulmões será suficiente para voltar à superfície. Pensei duas vezes nesse risco, sabes? Quem engano… pensei mil vezes nesse risco, mas hoje penso mil vezes em como valeu a pena vivê-lo. Dói-me que o tenha feito, as feridas da tua presença marcam-me como ácido na alma, mas a dor que sinto envolve-me e deixa-me com um triste sorriso que se recorda da tua presença.
.
Ai como me apetece chorar! Não me perguntes porquê, por favor, ou poderei dizer coisas que não quero ouvir. Não me perguntes porquê e limita-te a não ler o que agora te escrevo. Tenho saudades tuas como a lua tem da noite. Tenho saudades tuas como tu tens de mim… penso. Desta vez não penso mil vezes. Penso uma, quem sabe duas… forço-me a parar o sacrifício que é examinar o teu sentimento por mim. É-me difícil, mas consigo vivê-lo como algo que, por mais indefinido que possa parecer, será sempre aquilo que é… estranho a minha estupidez ao, num esforço qualquer ao tornear a definição de ti para mim me fico por algo estupidamente vago. Assim me apetece…
.
Os dias que me separam de ti, ou dum novo esporádico mergulho no pequeno mundo que criamos, são cada vez menos. Penso se será melhor uma inventada e azul realidade do que a cinzenta existente. Penso nos quilómetros que separarão estas duas, penso em qual delas será aquilo que posso tocar. Porque terá de ser a minha realidade algo que me entregaram? Porque não a posso criar, porque não a posso escolher e abraçar? Estará na consciência da nossa brevidade tudo aquilo que te eleva para mim? Não sei, não sei!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quero

a ouvir Radiohead - Bodysnatchers [clique para o link]

.

Que passeio delicioso é esta VIDA! Apetece-me saltar para um qualquer lado desconhecido. Sobreviver às custas de sorrisos, comer lamentos desnecessários. Correr em cima de carros, beijar estranhos e fugir, deitar-me na estrada e adormecer a sorrir. Lembrar-me de tudo o que tenho e fiz e embrulhá-lo num estranho embrulho de alegria. Fazer merda a torto e a direito, pensando apenas no próximo segundo, estalar o verniz da sociedade que me olha de soslaio por não me perceber. Ser o verdadeiro rebelde sem causa, o mau exemplo que ninguém deve seguir. Foda-se como me apetece ser de tudo um pouco. Desfazer-me em elogios aos transeuntes, beijá-los com uma gargalhada e dar-lhes uma palmada nas costas. Dançar todo nu o mais estúpido dos tangos, numa bebedeira sem elixir nem consequência. Partir-me a rir e com vontade, até me doer a barriga, e rebentar em lágrimas sem aparente razão. Quero sentir coisas estranhas e sem grande significado, quero sentir vulcões e euforias dentro de mim, deixar-me mal disposto e querer vomitar num exercício de não compreensão da beleza que cada segundo tem. Quero olhar para um relógio e adivinhar o próximo segundo, pará-lo na impossibilidade de tal acontecimento, ficar fodido com a desilusão. Quero envelhecer, não quero envelhecer. Que se foda, quero alguma coisa. Quero sentir a vontade e a necessidade de querer coisas que não tenho sem me preocupar porquê. Viver a essência de momentos irrecuperáveis e morrer de tristeza face a constatação da sua brevidade.

.

Quero querer e querer o mais que possa sem me arrepender. Quero querer e não ter porque o não ter.

sábado, 22 de novembro de 2008

Não

Amiina – Rugla
.
Não me perguntes como me sinto se não te sei responder. Sinto o meu estilo crescer, sinto-me mudar, sinto a minha pessoa saltar níveis, perdida à procura daquilo que eras para mim. Sinto a minha alma à deriva em sentimentos que pareço já não ter. Por isso não quero que me perguntes nada. Silencia-te mais um ou dois anos, quem sabe com o passar do tempo esqueço o que é sentir de todo e não preciso de te mentir. Quem sabe com o tempo esqueço quem sou, quem fomos, e não seja nada mais do que a imagem ilusória que guardamos num canto qualquer.
.
Não fales comigo nem me questiones. Continua a brindar-me com a tua diária presença, os teus lendários carinhos e a tua infinita atenção. Sê como sempre foste para mim por favor. Não mudes, ou terei de pensar se ainda gosto de ti. Não mudes pois assim é mais fácil. Não mudes para poder viver agarrada a tudo o que juntos criamos, sem consciência da VIDA que sempre aconteceu fora da nossa rotina…
.
Não me faças sentir velha. Não me faças sentir que o vestido de princesa que me ofereceste quando nos conhecemos já não me serve. Não me faças sentir que nada mudou, ou que tudo mudou… não me faças sentir de todo, e quem sabe assim o sorriso que vês se possa mais aproximar da realidade ilusória que é o que vai dentro de mim. Não me faças sentir que as rugas se aproximam e o sentimento esvanece. Não me faças, sobretudo, fazer o que agora faço, colocando as tuas defeituosas qualidades num papel e olhá-las com tristeza.
.
Não quero fazer nada mas as linhas aparecem diante de mim. Sento-me frente à máquina de escrever, o teu vivo corpo a dois metros, no mesmo sítio de sempre, com uns indesejados pontos de interrogação a circundá-los ávidos, quais abrutes esfomeados. Não quero fazer nada mas as perguntas que trago comigo e tento afogar são demasiado pesadas. Não as consigo fazer ir embora, não me consigo, acima de tudo, fazer ir embora. A porta é demasiado pequena e o futuro demasiado incerto. Olho com saudades para o passado em que não pensava, em que apenas existia e tudo era perfeito. Quero sorrir de boca cheia, sentir que te amo, quero, como nunca, não pensar em mais nada a não ser no que fazer no próximo segundo…

domingo, 16 de novembro de 2008

Fá-lo

Fá-lo, meu querido, fá-lo. Não tenhas pressa, estou aqui ao teu lado. Abraça-me no teu abraço sôfrego e luzidio. Aperta-me nos teus braços dourados e diz-me que tudo vai correr bem, que um segundo é tudo aquilo que poderíamos desejar. Pára o tempo um bocadinho, eu sei que podes. Pára o tempo e deixa-me existir à vontade neste segundo, deixa-me ser eu só para ti, deixa-me abrir os braços e sentir quem és.
.
Abraça-me devagarinho e pede-me o que não posso dar. Não vou dizer que não. Fala comigo baixinho, deixa-me adormecer. Deixa-me dobrar o tempo, deixa-me dobrar o espaço, deixa-me fazer tudo o que é impossível e que me permita abrir os olhos só mais um bocadinho. Sente a minha pele a envolver-se na tua, sente o meu sentimento crescer, acalma-o, desafia-o, beija-o. Deixa-me afundar-me em ti e percorrer tudo aquilo que não me contaste. Deixa-me saber o que não queres que saiba. Tem calma, não digas uma palavra. A minha fortaleza é o teu olhar que, atento, me despe de mim. Fá-lo. Faz desaparecer da minha alma tudo o que não sou. Descola a pouco e pouco as partes de mim que me afastam de quem és. Funde-te comigo. Lentamente conseguimos. Sofre comigo.
.
Fecha os olhos e entra comigo onde nunca quiseste entrar sozinho. Agarra-me e não me deixes cair. Agarra-me até que me doa, mas agarra-me com calma. Aperta-me devagarinho, faz a minha pele queixar-se, dá-me beijos pequeninos. Fala com os meus lábios, abre os meus olhos e olha para nós. Podes esticar o tempo um bocadinho. Estica esse segundo, congela-o, não me interessa o que faças, mas fá-lo. Fá-lo com calma.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

JR

Ryan Farish – Pacific Wind

Penso vezes sem conta na minha decisão. Disseco cada segundo do meu passado e tento viver de novo o momento em que decidi vir, sair, para poder fazer diferente. Vejo os meus dedos a beijar o teclado, os meus olhos passearem pela proposta de dois meses em Balsall Common, esse pedaço de desconhecido que, a alguns milhares de quilómetros de distância, me tenta seduzir. Quero saltar para esse passado para poder escolher diferente. Odeio-me por isso. Odeio-me por o querer fazer e estranho-me totalmente por saber que não o faria, tivesse eu mais mil viagens a esse momento…

Penso no meu dia-a-dia, penso nas ilusões que alimentei e em como em tantos casos não mais que isso foram. Ilusões e promessas de algo diferente. Penso no meu dia-a-dia, mas volto a pensar. Concentro-me nas palavras que me dizem, nos conselhos que me dão. Fazem-me sentido. Sentir esta dor que sinto e o massacrador peso da saudade criará uma Rita diferente. Alimenta a minha VIDA com estórias, alimenta o meu ser com pensamentos, que me inundam e me deixam confusa. Percorro o meu caminho de todos os dias, divertida aprecio o clima intermitente inglês, que ora me brinda com viscosas gotas de água que servem apenas para destruir o meu penteado, ora oferece aos meus olhos a magnífica visão dos bravos raios solares ganharem a dura batalha que é oferecer um pouco de calor a quem por terras britânicas se aventura. Penso no meu dia-a-dia… mas volto a pensar. Paro uns segundos que, gozões, em minutos se transformam enquanto enrolo um doce cigarro, e entrego-me à estrada e às dezenas de metros que me separam de onde posso ser um pouquinho mais feliz. Ouço Ryan Farish, sinto a minha alma dançar um pouquinho com a sua melodia, à medida em que me sento na sebe de madeira molhada. Fecho os olhos e quero ser tudo o que me rodeia. Sinto-me pequenina mas extremamente importante para o equilíbrio do mundo que me abraça. Penso no que por vezes me dizem, e na incompreensão que me mostram acerca de como posso gostar tanto de algo tão simples. O cheiro a lavanda da planta que apanhei minutos antes agarra-se aos meus sentidos, o verde que tenho diante de mim faz-me feliz. Penso e volto a pensar. Penso em como sei que, no final, tudo valerá a pena. As pequenas batalhas do dia-a-dia, por mais que custem passar parecem desaparecer, ou transformar-se, nos momentos em que me vejo apenas comigo, no meio de tudo o que mais amo, a natureza que não faz mal a ninguém. Penso, penso, penso. Não consigo, tampouco o quero, deixar de o fazer. Os pensamentos misturam-se com imagens de sorrisos caseiros nunca esquecidos, e a vontade de voltar volta a fazer-se sentir. Entrego-me ao futuro e vejo-me chegar, descendo, imperial, as escadas do avião, alguns artigos na mala e nada além de orgulho na bagagem. Vejo os rostos dos meus amigos e vejo-me chorar de alegria por os ver. Penso se realmente pensarei, ou terei consciência do importante que isto está a ser para mim, e da maneira como recordarei os dias aqui passados, para sempre. Penso no porquê de me sentir triste por ter finalmente deixado o berço, se sempre o quis fazer. É difícil, e a resposta afigura-se difícil. Queria tê-la diante de mim, quem sabe um pedaço de verdade traria consigo alguma paz e sossego. Sim, traria alguma paz e sossego, mas tenho 20 anos, que farei com paz e sossego?

domingo, 9 de novembro de 2008

Jovem

XX

- O que temes? – perguntou-me o doce e apaparicado menino de vinte anos.
- O que temo? – respondi, tentando ganhar algum tempo para responder a sua inteligente questão. Sorriu-me, dizendo-me sem se pronunciar que não repetiria a questão. Fechei os olhos, beijei-o mais uma vez, e tentei explicar-lhe, com um subtil olhar, os milhares de quilómetros que nos separavam. Não me respondeu, sentindo eu que a minha inexistente resposta não chegara à sua atenção. Como explicar o que se teme, quando se batalha por não o querer saber? – Porque tens de pensar tanto nas coisas, e não podes simplesmente abraçar este momento? – respondi, fugindo à sua questão, enquanto pegava no seu braço e o impelia a me acariciar, suavemente, o pescoço.
- Porque já não consigo viver sem ti. Já não consigo sobreviver com a mera ideia de que o que se está a passar é apenas uma louca aventura. Já não me consigo agarrar à excitação que me dava estar com uma mulher casada trinta anos mais velha que eu… – disse-me, cruamente. O peso das suas inocentes palavras apenas acentuaram o peso das minhas rugas. Começava a nascer algo que eu própria nunca havia previsto, e que se revelava assustadoramente real. Se por um lado tentava zombar dos sentimentos do pobre jovem, tentando mostrar-me a mim própria como passiva e intocável, por outro lado receava admitir que o que ele dizia era o que eu pensava vezes sem conta. Esticava ao máximo as horas em que estava na sua presença, sofria como nunca quando longe. Já deixara de o ver como “o meu jovem” e já o via como… “o meu homem”. Deus, como me é estranho dizer isto!...
- Queres agarrar-te a quê? – pergunto, brincando com o seu cabelo. Temo a sua resposta. Seja o que for, não vou gostar. Seja aquilo de que não goste, o passado que implicou, o presente que implica ou o futuro que pode implicar. Cada desfecho é assustador, cada alternativa relembra a possibilidade de tudo o que se passou entre nós ser um erro.
- Quero assumir o que temos, ou desaparecer, ou fazer alguma coisa! Fazer alguma coisa que nos permita estar juntos sempre que nos apetecer, sem estas mentiras e arranjos… – diz, elevando-se. Estava deitado na cama, de barriga para baixo, agora olha-me doutra perspectiva, com os cotovelos apoiados no confidente colchão. Vejo o seu olhar carregado de algo que me parece uma mistura de desespero com esperança. Não faço a mínima ideia do que lhe responder. O que eu queria fazer era largar tudo, e assumir, para poder, como ele diz, estar junto de si a toda a hora…
O que tenho a favor é “apenas” um ponto, o que tenho contra são inúmeros. E como pode apenas este ponto colocar numa situação tão frágil tudo o resto? Como podem algumas coisas, por mais simples que sejam, ser tão poderosas a ponto de nos fazerem questionar tudo? Admito que me perturbaria imenso saber que as pessoas falavam de mim na rua. Sei que a ele não, é romântico e jovem… e isso é outro pormenor que me faz afastar terrivelmente a possibilidade de termos um futuro.

XY

- Tu não queres estar comigo… – diz-me, tristemente. Preparava-me para uma rejeição, mas esta frase… não sei bem em que categoria a posso incorporar dentro de mim…
- Que queres dizer com isso? – pergunto. Tento apanhar o seu olhar, puxá-lo para mim para quem sabe mexer na sua opinião, mas olha algures que não para mim…
- Tu tens a VIDA toda pela frente! Tens a universidade, paixões para viver, erros para cometer… eu estou no processo completamente invertido… estou a descer…
- Mas – tento interromper.
- A cada segundo que passa sentes mais VIDA dentro de ti, eu sei-o bem. Mas eu, a cada segundo que passa, sinto menos VIDA dentro de mim! E não penses que vou querer roubar-te um segundo da tua jovialidade…

XX

- Mas será que não posso ter algo a dizer em relação à minha própria felicidade? – pergunta-me, quase irritado – É quase certo que se ficares comigo, não vou viver toda a minha VIDA do teu lado! – faz uma pausa, imagino que ganhe coragem para dizer o que tem a dizer – Provavelmente morrerás muitos anos antes de mim, e a minha VIDA continuará. Mas isso está tão longe… Já é tarde demais para procurar o meu primeiro amor! Encontrei-o em ti, e não ficarmos juntos vai apenas deixar-me amargurado!
- Mas
- Não há “mas” que possas dizer! É a verdade… – impossível saber a razão que tenho, o sentido que as suas palavras fazem em mim. Se ouvisse a mesma estória contada por outras pessoas, o que sinto dentro de mim seria estúpido e irresponsável. Mas a diferença que vai entre o que nos contam e o que sentimos será sempre, ela mesma, estúpida, e eventualmente sem sentido. A decisão que eu quero tomar é apenas uma. Desaparecer. Assumir, admitir, seja o que for, e entregar o meu amor ao jovem de 20 anos que sente tal sentimento pela primeira vez… É difícil, como é, afastar a maneira como o mundo, por detrás do meu ombro, espreita cada jogada e opção que tomamos, mas a minha vontade é uma…

XY

O desespero que sinto quer explodir em lágrimas. Aguento-as, sinto que isso apenas a relembraria da minha tenra idade, sinto que viajasse instantaneamente ao primeiro momento, em que eu não era um homem aos seus olhos, mas um interessante rapaz. Sei a sua resposta.
- Tudo bem, querido, tens razão. – diz-me, passeando seus dedos pelo meu braço. Sinto adrenalina inundar o meu ser, e a eventualidade da minha previsão estar errada deixa-me perto do êxtase – Vamos assumir o que temos, e ser felizes tanto quanto possamos!

XX

Dei voz aos sentimentos que tinha dentro de mim e senti-me estranhamente confortável e feliz perante a ideia de futuro que se começava a desenhar. Porque não? Tenho 50 anos e ele tem 20, mas será isso assim tão errado? Sou casada, e isso é errado de acordo com quem gere as nossas VIDAS e tomas as nossas decisões. Mas não será mil vezes mais errado viver em relações cujo sentimento é um mero nada a que nos agarramos? Sim. Será difícil, mas vê-lo, a um metro de mim dá-me o conforto e a energia para enfrentar tudo o que terei de enfrentar. A ideia de o ter comigo sempre que quero, a ideia de poder pousar em si os meus olhos é apenas um milhão de vezes melhor que a tristeza de lhe dizer adeus para sempre. O futuro não será tão longo assim, mas o presente será bestial…

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Como O Mundo Avançou

um

A

Foi num Domingo. Era de manhã, creio que por volta das dez e qualquer coisa… Tinha acordado fazia pouco tempo, e punha café a fazer. Tomaria banho de seguida. Estávamos em Maio e a temperatura era agradável. Ouvia Getaway Car, dos Audioslave… O telefone tocou algures enquanto eu caminhava da cozinha para a sala.

B

- Ele acordou!! – gritei, com um sorriso viajante e um tom que, apesar de muito elevado, nunca exagerado. Dava a notícia à única pessoa no mundo que eu sabia que ficaria tão contente quanto eu com a novidade, e isso unia-nos eternamente, apesar do tempo passado.

C

- Quanto tempo… estive… em coma? – pergunto – Onde está a A.? –tudo o que me passava pela cabeça relacionava-se com estas duas questões. Quanto tempo estive fora? Dois meses, seis meses, um ano?? Fiz A. perder muito tempo da sua VIDA, esperando por mim? Esperou por mim? Noto como me custa algo tão simples como falar, algo tão simples como pensar. Sinto-me terrivelmente cansado, sinto-me terrivelmente ansioso, sinto-me, acima de tudo, destreinado de sentir. Quando tempo estive fora?

D

Quando A. me ligou, não pude acreditar. Não pude acreditar como, ao ouvi-la pronunciar aquelas duas palavras, tanto entrei em contacto com a minha natureza animal. Como pode ser possível que eu tenha ficado triste ou desiludido pelo meu amigo ter acordado de um coma? Acho que chorei, e ninguém estranhou, pensando que as lágrimas que viam correr eram de alegria, quando representavam nada mais que um misto de desilusão comigo mesmo, traição ao meu melhor amigo, o constatar de que nunca poderia ter A. para mim, que o tempo que esperara por ele fizera sentido… que o tempo que eu esperara por ela nenhum fez…

dois

A

Quando treinamos tanto tempo sentimentos e reacções, encontramo-nos completamente sem saber como acontecer quando surpreendidos pelo esperado. O choque foi tal que me recordo de tantos pormenores do que fazia antes, mas não faço ideia do que respondi a B…. O momento de que me recordo presenteia-me a imagem de um espelho choroso, de uma pessoa a chorar compulsivamente. Sentia que podia finalmente libertar duma vez toda a mágoa e tristeza acumulada. Não precisava já de disfarçar que acreditava que acordaria, de vestir sorrisos, de me dar falsas esperanças. O meu amor tinha acordado… não me senti mal por ter tantas vezes duvidado se alguma vez o faria. Não me senti mal pois isso nunca me impediu de o visitar quase todos os dias, não me impediu de dizer não a D., por mais que me custasse, por mais que, no fundo, me apetecesse dizer que sim…
Fiz a viagem com calma. Não porque queria ser cuidadosa para nada me acontecer agora que estava tão perto de o ver. Não por isso, mas porque sentia uma ansiedade inexplicável rebentar dentro de mim. Sentia-me… e isto sim, custa-me admitir… sentia-me como se fosse encontrar um desconhecido por quem me tinha apaixonado através de… cartas, ideias, imagens… Levava comigo as memórias de todos os bons tempos passados, a que me agarrava com unhas e dentes, com medo de esquecer o amor, agora que o tinha de volta.
Vi-o. Vi-o e tudo rebentou. Mais uma vez não aguentei o choro, não aguentei nada, e simplesmente desabei sob o seu corpo, no mesmo sítio dos últimos tempos, mas com alguém a habitá-lo. Senti-o tocar-me, e tudo voltou.

B

Quando vi o meu filho de olhos abertos, com os mesmo pregados em mim, senti as minhas lágrimas correrem pela sua cara. Ignorei a sua cara de surpresa ao olhar com mais atenção para mim, agradeci a deus por estar presente nesse momento. Abracei-o com força, como o abracei… Abracei-o com força, senti os seus delgados braços tentarem, frustradamente, fazer o mesmo, senti a sua mente confusa e sem saber.
- Mãe, que se passou? – perguntou-me, baixinho. Como é que passei tanto tempo imaginando como seria quando acordasse, pensando em tudo o que faria, e nunca me passou pela cabeça como lhe explicaria?... Que se passou?
- Filho, tu tiveste um acidente. Foi muito grave. Lembras-te de alguma coisa?
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… – responde, após um olhar carregado de pensamento – Quanto tempo estive em coma? – perguntou, a medo.
- Não, filho, tu não ias a conduzir. Ias para casa com o D. Era uma Quinta, final da tarde. Num cruzamento houve um carro que… não parou – sinto algumas lágrimas quererem estragar o ambiente. Empurro-as para dentro – e bateu no vosso. Foi uma sorte não terem morrido os dois…
- Que aconteceu ao D.?
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo!

C

Agora… quando é agora? Quando vi a minha mãe, senti esse agora como algo muito longe e perdido. Vi entrar pela magra porta do hospital a mesma cara de sempre, a mesma cara que me acolheu há não sei quantos anos atrás neste mundo, mas vestida de um rosto mais pálido, triste, e rugoso. Vi como os anos deslizaram, e saltei na minha mente para um estado em que não queria saber o tempo que havia passado.
- Não sei… não me lembro da última vez que conduzi… Quanto tempo estive em coma? – ouvi alguém dentro de mim perguntar, para minha surpresa. O medo fez-se sentir de uma forma estranha e inquietante. Vivendo numa dormência de sentimentos constante, cada um era sentido como novo e misturava-se entre as definições aprendidas… O rosto envelhecido da minha mãe disse o que os seus lábios não tiveram coragem de admitir. Foi muito.
Tentava focar-me no que me era dito, relembrado, mas queria apenas ver B. diante de mim. Queria saber se tinha esperado por algo que era tudo menos certo. Sentia o reboliço de emoções sem nome dançar no meu interior, sentia os meus pensamentos como contraditórios. Se por um lado queria que estivesse feliz, por outro queria que estivesse à minha espera nesta espécie de eternidade.
- O D. partiu algumas costelas e estalou a coluna. Quase ficou paralítico… Mas agora está óptimo! – não queria continuar, por mais um segundo que fosse, na minha ignorância. Agora que penso nisso, protegido pela segurança dos anos que me separam desses momentos, percebo a confusão que sentia dentro de mim. Queria, não queria, sentia, não sentia, sabia, não sabia…
- Mãe, quando tempo estive em coma? – perguntei, tentando ser o mais sério e veemente possível. Enfrentei o seu olhar com o meu, prendendo a sua atenção e exigindo um número. Tinha de saber o mais cedo possível. Tivesse sido o tempo que tivesse sido, cada segundo agora era precioso, e o domínio do não-saber era um luxo a que não me podia dar.
- Sete. – ouvi a voz, à minha direita, dizer. Ao olhar para a sua face, não consegui distinguir anos ou expressões. Toda ela era as minhas lágrimas. Correu para mim e explodiu no meu peito, abraçando-me e chorando. A minha saudade era artificial. Como podia sentir a sua falta se apenas a tinha a uma noite de sono de distância. A minha memória estava confusa o suficiente para poder parecer que tinha adormecido a seu lado e que agora a via ao acordar. O vazio dos anos que sentia era para mim, tal como a saudade, artificial, algo que eu não sabia se sentia porque sentia, ou se sentiria algo completamente diferente se me dissessem que tinham sido sete dias.
A. beijou os meus lábios secos, chorou por eternos momentos e disse que me amava.

D

Algum tempo depois de tudo, A. falou-me da dificuldade que tem tanto treinar e imaginar reacções e posteriormente desempenhar esse papel… Hoje não me recordo do que lhe disse mas o que senti ainda hoje sinto vez por vez. Senti como completamente injustas e estúpidas as suas palavras… Estúpidas porque estar dentro de mim naqueles momentos foi das coisas mais difíceis que alguma vez tive de enfrentar. Ver C., o meu amigo de infância, sorrir, despertava uma alegria imensa… que rapidamente era manchada pela imagem quase satânica de ver A. do seu lado, a sorrir igualmente, feliz por ele estar de volta. Tremia, tinha medo de tudo o que pudesse dizer, de tudo o que pudesse fazer. Mas sabia que conseguiria esquecer o idílio que era ter A. para mim, que conseguiria abandonar uma ideia que nunca tinha tido nada para ser real, e que tudo voltaria ao normal.

três

A

Uma vezes desfeitos os sorrisos, veio o silêncio. Tinha diante de mim alguém que não conhecia. Como seria possível que tanto tivesse mudado se nada na verdade tinha acontecido? Como pode o nada ser tão forte a ponto de mudar tudo?
Depois de C. acordar, depois da surpresa deixar, lentamente, o meu corpo, vieram as obrigações. O constante cuidado, as viagens para a fisioterapia, as perguntas intermináveis acerca do que tinha acontecido… o tanto para dizer que se atropelava e não passava no final de um triste soluço. Acho que apenas contava com o sacrifício da espera, imaginando que tudo seria rosas daí em diante. Acho que talvez achasse que tinha sido castigada o suficiente, que ele, sem culpa nenhuma, tinha-me arrancado o passado… e sentia uma injustiça cruel ao ver o presente desaparecer dia após dia, juntando-se a essas memórias que fazia por esquecer…
Sentia-me cruel, sentia-me desprezível, e via o seu olhar de incompreensão como pesados fardos que tentava aguentar, numa tarefa impossível que era ser para ele tudo o que tinha já sido. Os meus últimos anos nada tinham a ver com o que ele era. Quem eu era, a pessoa em que me tinha transformado, susceptível à nem sempre triste erosão do tempo manifestava-se em desalinho com a pessoa que ele deixara no tempo.
As decisões acerca do que fazer foram tomadas por mãos que não as minhas. Mas não conseguia deixar de me ver nos bastidores, sem maldade mas com intenção, a manejar as minhas incontroláveis reacções, e acabar por ser eu a decidir, sem o fazer, o que fazer connosco.

B

Ver os olhos tristes dele era quase tão difícil e pesado como os ver fechados. Com o passar do tempo, face a dura realidade do que via, sentia nascer dentro de mim um ódio por A. que não conseguia compreender. Tentava ouvir a minha própria e suposta voz da razão. Tentava equilibrar o meu interior, procurando perceber o porquê do que via acontecer. Mas não conseguia, nunca consegui. Os olhos dele sempre falavam mais alto do que alguma coisa que eu conseguia ouvir. Os olhos dele sempre me mostravam o cinzento que ia dentro de si, as perguntas sem resposta, a espera…
Eventualmente, o que começou num acidente, acabou aparentemente acidentalmente.

C

O fim pode ser mais pesado que a terrível consciência do tempo. Não sei quanto tempo dura um fim. Se escassos milésimos de qualquer coisa, se dias, meses, sete anos… Hoje, não sei se tudo acabou no momento em que o carro embateu na minha alma, se quando os zangados olhos de A. massacravam a minha pele, se quando tudo se materializou numa palavra…
A paixão sentida no dia em que acordei abraçou-me de uma forma estranhamente reconfortante. Uma vez u… não. Ia dizer uma vez ultrapassado o choque… mas acho que nunca ultrapassei realmente o choque de ter perdido sete anos da minha VIDA, e com eles o meu primeiro amor. Passei, isso sim, por períodos. Tantos que já não lembro. Com o passar do tempo, sentia-me a alternar. Ora me sentia conformado e vazio, feliz por ter sobrevivido, desesperado com vontade de desaparecer…
Passados os primeiros momentos, em que os nossos olhares falavam por nós, as palavras revelavam-se arrastadas e forçadas. Eu tinha curiosidade acerca de tudo o que se tinha passado, e sentia a vontade de A. em me contar, mas a dificuldade em o fazer. No meu interior, muitas vezes sentia-me zangado, triste, revoltado… como seria possível que tanto tempo se tivesse passado, e por vezes me apetecesse perguntar-lhe se também tinha estado em coma…
O seu olhar castigava-me frequentemente. Sentia-me estranhamente culpado por ter estado tanto tempo distante. Sentia-me vulnerável e frágil, dependente de si, e sentia isso como injusto… sentia como injusto porque não queria pedir mais que os sete anos que me tinha dado, e sentia como injusto pois A. fazia, sem o querer, por mo recordar constantemente. Algo se tinha perdido, e os anos que desapareceram de mim acabavam por se revelar importantes apenas por significarem a perda de uma relação que em tempos julgara perfeita…
Como pode o tempo ser tão importante? Como pode algo tão relativo determinar termos tão absolutos? Se os sete anos passaram para mim como uma noite de mau sono, como podem ter passado como décadas para A.?... Estas questões inundavam qualquer pensamento que tinha, revelando-me algo que eu fazia por afastar, por negar.
As discussões, quando existiam, eram marcadas por tudo o que não era dito. Via as frases em todo o lado menos nos seus lábios. Queria ouvi-la dizer que estava farta, que tinha de seguir o seu caminho, mas nunca acontecia… As palavras ficavam suspensas no ar, apenas eu as via, apenas eu as sentia doer…

D

- Que foi? – perguntei, ao vê-la chorar. Abraçava-se a mim com força, e sentia o seu choro como exagerado. Não sei porquê, não conseguia imaginar o que quer que fosse que fosse justificativo…
- O C. acabou com tudo! Com tudo… – respondeu, entre soluços. A surpresa foi tanta que, recordo-me, não tive a certeza que tinha ouvido correctamente.
- Acabou?... com…
- Sim, disse para eu seguir o meu caminho… – não fazia a mínima ideia de como me sentir… Não me sentia feliz, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento, não me sentia triste, porque dois amigos meus tinham acabado um relacionamento. Hoje percebo as suas razões, mas ao ouvir A., que entre lágrimas me contava o sucedido, uma onda de incompreensão tomava conta de mim e um ódio que não queria sentir toldava a minha visão. Só pensava na injustiça que era A. ter esperado tanto tempo por C., apenas para este, passado uns meses acabar com tudo, deixando-a de rastos…
Porém, como disse, hoje percebo. Não sei quando foi a última vez que vi o meu amigo. Talvez há quatro, cinco anos… Ainda vejo partes de si, apesar de que cada vez menos. Vejo partes de si em olhares esporádicos e perdidos de A., vejo partes de si no meu dia-a-dia que conta com a presença de alguém que foi, em tempos, eternamente sua. Hoje percebo o quanto lhe custava ver o olhar triste de alguém que já tinha abdicado de tanto, o quanto ele sentia que não lhe podia pedir para o continuar a fazer. Talvez simplesmente A. não pudesse colocar um final enquanto C. dormia, e talvez tenha tido a cobardia de o fazer quando este acordou, obrigando-o a oferecer-lhes as palavras que, sem querer, A. tanto queria…